Raça Galega….
"Quando
os nazis levaram os comunistas, calei-me, porque, afinal, não era comunista.
Quando prenderam os sociais-democratas, calei-me, porque, afinal, não era
social-democrata. Quando levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque,
afinal, não era sindicalista. Quando levaram os judeus, não protestei, porque,
afinal, eu não era judeu. Quando me levaram, não havia mais quem
protestasse"
Martin
Niemoller
Normalmente não escrevo aqui sobre casos concretos
que vivo no trabalho de professor. Tenho falado muito por aqui de escola,
gestão de escolas, administração escolar, concursos escolares e outras coisas
escolares. Mas há dias tive uma estreia nas minhas experiencias de professor e, por isso, vou falar de um caso concreto
cujos intervenientes, como é óbvio, não identificarei.
Pela primeira vez, em 18 anos disto, vivi a seguinte
situação: disse a um aluno para ler um livro e um “responsável parental”
decidiu em casa que o aluno não o ia ler porque a dita responsável sabia do
tema em causa mais que eu (o que, a ser verdade, podia ser discutido mas não
desautorizando totalmente o pouco que eu possa saber, entenda-se).
A história seria engraçada, se não fosse tão triste
e significativa da ignorância que grassa entre pessoas, com certificação alta,
mas instrução e educação insuficiente. Porque, nestas coisas de comportamentos
e consciência cívica, às vezes, o diploma de 12º ano não garante que se seja um
bom cidadão.
Para se entender o episódio é preciso ter algum
enquadramento. Na escola onde trabalho há uma forte presença de ciganos (cerca
de 12% dos alunos). E, ressalte-se, na frase anterior não usei a palavra etnia, com deliberada intenção (aliás,
normalmente não a uso).
Na verdade, os alunos (e seus pais), se perguntados
pela sua identidade, responderão com toda a naturalidade que são portugueses e
ciganos, porque se identificam a si próprios como tal (e, na primeira categoria
de identidade, o BI o prova, com uma indicação de naturalidade que faz deles
darquenses, como eles diriam, ciganos de Darque). E nestas coisas de identidade
o que nós dizemos de nós próprios é o mais importante.
Por isso, dizer que são ciganos, simplesmente, não
tem mal rigorosamente nenhum, porque os próprios o fazem sobre si próprios e se
auto-designam como tal.
Mas, nesse grupo há alguns que até outros ciganos
designam como “galegos”. Moram num acampamento, são paupérrimos e é assim que
os restantes falam sobre a sua identidade (e, eles próprios, pouco resistem a
essa etiqueta, que tem usos ofensivos). Não gostam da etiqueta mas as suas
prioridades na vida incluem o problema de sobreviver em condições indignas de
um país europeu e que diria simplesmente que bradam aos céus.
Mas nesta coisa das designações e das palavras,
diga-se que há até alguns ciganos que se auto-designam usando a palavra raça. Alguns alunos nossos soltam frases
em que dizem “raça cigana” ou até, nomeando
esse grupo particular do acampamento, como “de
raça galega”.
The R…. Word
Numa escola, por muito que a luta seja inglória e
tenha de ser constante, é sempre completamente inaceitável que se use a palavra
raça para designar pessoas que participam
na mesma comunidade escolar. E surge, portanto, neste passo do contexto, o
problema da inaceitabilidade da palavra em contexto educativo e dificuldade de
como o fazer constar.
É infelizmente muito comum que se ouça entre alunos,
ciganos ou não, usar a palavra raça e
alguns até dizer que há “ciganos puros”
e “ciganos galegos” (por vezes,
ofensivamente chamados “do monte”) e até
dizerem que algumas outras pessoas não são da sua raça. A polícia de linguagem não pode ser um procedimento exaustivo
de uma escola e a pedagogia destes assuntos não é muito fácil. Combatem-se
séculos de hábitos e discriminação e contextos sociais e familiares de
pensamento muito instalados.
De qualquer
forma, tenta-se desincentivar sistematicamente o uso da expressão raça e explicar a sua origem não
cientifica e até anti-cientifica. Mas o facto é que ela aparece nos discursos
dos alunos e, quando aparece, é uma oportunidade de esclarecer sobre o racismo,
de pensar essas atitudes e explicar pontos de vista alternativos.
Aliás, para algumas pessoas com aromas fortes de
racismo subtil, a pior espécie porque a mais entranhada, o facto de haver
ciganos a falar de raça justifica o
seu próprio racismo contra eles, como se uma coisa tivesse a ver com a outra.
Ainda há tempos tive longa conversa com alguém
licenciado em área com forte formação em Biologia (e que, por isso, tinha
obrigação de saber mais) que dizia que “raça”
sempre se usou e, por isso, continuará do alto da sua ignorância a usar a
palavra para falar de outras pessoas até porque essas pessoas, algumas iletradas,
também a usam. Este raciocínio pouco ético justificaria chamar nomes, se outros
chamarem, ou, bater, se os outros baterem, daí nem valer a pena tentar
racionalizar sobre isto.
Ler livros…. Coisa
perigosa
Um destes dias, num contexto de resolução de um
conflito entre alunos, houve um que, não é cigano, que identificou um colega
como sendo de “raça galega”. No
contexto do conflito, isso não tinha relevância nenhuma, até porque o autor do
deslize até nem se tinha portado mal e tinha ajudado a sarar o conflito. Mas ao
ouvir a expressão lá lhe expliquei (e porquê) que o colega tinha nome, e que não
repetisse a expressão à minha frente porque “raça galega” era termo que não se aplicava a pessoas e encerrava um
contexto racista.
Para vincar o ponto em frente a outros alunos lá
expliquei porquê (e espero que quem lê dispense a explicação, em nome da
economia). Mandei-o ir à biblioteca da escola, pedir que lhe dessem um livro sobre
racismo e que o lesse e daí a uma semana aparecesse para me explicar se tinha
entendido o que eu estava a tentar dizer. Alguns, face ao que aconteceu a
seguir, poderão dizer que podia ter feito de conta que não ouvi, mas não me
arrependo, até porque, a citação inicial de Martin Niemoller ressoa muito na
cabeça nestas alturas.
E o que disse para fazer, realmente, nem é castigo.
Desde quando ler livros interessantes o é? Pareceu-me uma forma sensata de lhe
mostrar (e discutiu comigo a validade da minha posição sobre as palavras, entenda-se)
que é preciso ter cuidado com o que dizemos e que os livros ensinam coisas que
evitam deslizes destes.
Foi à Biblioteca e a minha colega que lá esta
deu-lhe o livro O racismo explicado aos
jovens de que deixo link anexo e que, confesso, eu próprio ainda não li
(aceitei a recomendação da minha colega) mas que parece bastante recomendável
neste contexto.
O miúdo não me pareceu estar muito chateado com a tarefa
e pareceu aceitar com resignação estas bizarrias do seu director que manda ler
livros para encurtar ralhetes.
O problema foi que, no fim dessa tarde, já eu não
estava na escola e a mãe do aluno apareceu e explicou a um colega meu que o
aluno não ia ler livro nenhum, que ela não permitia e que o uso da expressão “raça” ou “raça galega” referente a pessoas não tinha mal nenhum e sempre
tinha sido assim e que ela achava muito bem que o filho assim falasse. Aliás,
“os ciganos também são racistas” (lá voltamos nós ao círculo vicioso em que
quem entra esquece, que não se ser racista, se isso acontecer, pode ajudar a
acabar com o racismo que é retro alimentado). Por isso, vinha expressamente
devolver o livro e eu que metesse a viola ao saco.
Voltou na manhã seguinte e, no meio de considerável
escarcéu, em que razoavelmente pôs em causa as minhas habilitações culturais e académicas
em temas de antropologia, história ou afins, porque o seu conhecimento na
matéria era definitivo e inquestionável, declarou sonoramente que o seu filho
não lia livros tais e ponto final. Até porque em Portugal não há racismo,
informou.
A autoridade dos professores anda assim nestes
atalhos. Uma pequena busca na Internet explica facilmente porque o desincentivo
ao uso da palavra raça abre toda uma
discussão sobre o racismo e sua ocultação e subtileza escondida. Em França
estão a pensar tirar a palavra da Constituição. Na Grécia, o partido racista
tem votações record.
E o racismo
existe porque, como dizia a douta progenitora do meu aluno, “sempre assim foi”.
Mas existe mesmo e vê-lo assim escancarado à minha frente dói no ânimo quando
se tenta acabar com ele.
Entretanto decidi tratar de começar a ler o dito livro
que sempre aproveitará a alguém.
PS: Naturalmente que, na conversa, com a Excelentíssima Encarregada de
Educação não fiquei calado mas até ameaças de queixas a poderes superiores já
tive em casos destes. E no fim, manda quem pode (quem será?) e a luta contra a
ignorância tem estes limites penosos. Para quem tiver interesse sugiro
vivamente 2 links para outras leituras que mostram o problema em faces reais e
que os nossos responsáveis políticos deviam ler para saber realmente do que
falam ao dizer certas atoardas.
5 Comments:
... Infelizmente, a situação não me surpreende. A alguns adultos nunca deveria ser permitido encarregar-se da educação de um menor, sob pena deste se tornar um adulto ignorante e consequentemente inútil à sociedade.
A citação acima não é de Brecht?
É frustrante quando temos a função de educar filhos de outras pessoas, e os encarregados de educação são afinal a principal e a pior fonte de educação dos jovens. Li o livro do racismo explicado aos jovens há alguns anos e lembro-me que é excelente a explicar o que é, e o quao erradas estão as pessoas racistas. Racismo é uma palavra injustificável nos dias correntes quando nos auto declaramos civilizados e humanos.
Este texto traz-me duas ideias à mente:
- que, de facto, é a postura de muito dos pais das crianças a responsável pela dificuldade crescente em exercer a autoridade numa escola e não qualquer política de um qualquer governo;
- por outro lado, continuo a não compreender porque é que somos obrigados a ter uma licença para podermos conduzir um automóvel, ao mesmo tempo que qualquer imbecil pode ser pai ou mãe, algo de muito maior responsabilidade que a condução de um veículo.
É por estas e por outras que defendo a necessidade das Escolas de Pais ... Desenvolvimento do pensamento crítico e divergente PRECISA-SE!
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