Uma história edificante da democracia escolar portuguesa
Das coisas que mais me
orgulho é de ter tido a mãe que tive e ter trabalhado 5 anos com um dos
deputados, advogado e oposicionista, que 25 anos antes tinha elaborado a Constituição da República e que,
nomeadamente, actuou e presidiu à Comissão sobre direitos e deveres fundamentais,
a qual escreveu parte substancial da nossa carta de direitos fundamentais.
Curiosamente, os
ensinamentos de ambos tornaram entranhada em mim uma forte aversão a processos
de democracia tumultuária ou massificante. Explico melhor: a democracia do “estamos todos de acordo, não estamos?”
ou do “então nem se vota porque há
consenso, não há? ”….Ou pior, do “elegemos
de braço no ar”…. ou do “votas contra
sozinho, porquê? tens a mania?”
A minha mãe, mulher de esquerda
e adepta da liberdade, quase foi saneada por votação estudantil “popular” de braço no ar do Conselho Diretivo
de uma escola por alturas do PREC. Motivo: não queria deixar queimar livros do “antigamente”, que até já estavam fora
de acesso, por achar que queimar livros era um ataque à cultura, mesmo se não
gostava deles. Salvaram-na alunos que abonaram por ela e pela pessoa que era,
mesmo se estava a ter uma atitude “contra-revolucionária”.
Contou-me essa história
quando, era eu adolescente, juntos vimos o belíssimo filme de Truffaut Fahrenheit 451…. (que recomendo
vivamente aos liberais que nos governam porque representa o que acontece numa
distopia futura onde os livros são proibidos, a opinião livre é antissocial e o
pensamento crítico é proibido; trailer
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7cQ-yGCyjyM).
O voto de braço no ar
sobre pessoas foi a base de perseguições políticas em estados totalitários, por
exemplo, na Alemanha Nazi e mais ainda nos regimes comunistas soviético ou
maoista. Cometeram-se das maiores vilanias por conta da vontade assim “claramente” expressa dos coletivos.
O voto de braço no ar para
eleições está proibido em Portugal no âmbito administrativo, nos órgãos
coletivos da administração, por via do art. 24º do Código de Procedimento administrativo.
O voto sobre pessoas é
secreto para garantir direitos individuais e a liberdade, nomeadamente a
liberdade de voto e os efeitos negativos do chamado pensamento grupal… Aquelas
situações em que tendemos a concordar uns com os outros por medo social, porque
parece bem (mesmo sendo mau) ou porque atuamos em rebanho.
Para evitar que
arrebanhamentos subtis ou declarados cilindrem indivíduos, as votações sobre
pessoas (eleições ou destituições) têm de ser feitas por voto secreto e com
determinados requisitos de forma. Assim, cada indivíduo votante pode consultar
a sua consciência sem pressões da massa e decidir.
Há 11 anos o PCP tinha
votações de braço no ar para os seus órgãos e foi obrigado a passar a fazê-las
por voto secreto por pressão de outros partidos…. (http://www.publico.pt/politica/noticia/pcp-diz-que-alteracoes-a-lei-dos-partidos-contrariam-liberdade-de-associacao-473516).[1]
Era muito interessante reler
o que disseram então em tom moralizante no
Parlamento os deputados do PSD e PP sobre essa mudança. A verdade é que o PCP é
uma associação voluntária e só se sujeitava ao “braço no ar” quem quisesse ser militante (e insisto que apesar
disso claramente não concordo com o voto de braço no ar sobre pessoas).
Mas as lições
emocionadas de democracia e dos seus formalismos desses dias parecem andar
esquecidas no seio do MEC. Agora parece que já se aceita voto de braço no ar em
eleições administrativas.
Uma história alto-minhota ......
A história conta-se
depressa. Dois antigos agrupamentos de escolas do Alto Minho foram agregados num único
agrupamento concelhio. Eleito o Conselho geral transitório (composto apenas por
professores do maior dos antigos agrupamentos, por alunos, trabalhadores
não-docentes e representantes do município) este escolheu os representantes da
chamada sociedade civil.
Começando a fazer, e
aprovando, o regulamento interno do novo agrupamento, os docentes e o Conselho
Pedagógico do antigo agrupamento mais pequeno e que não fica na sede de
concelho acabaram por achar, com fundamento na lei, que tal documento nunca
deveria ser aprovado sem ser ouvido, pela última vez, antes de se extinguir, o
Conselho Pedagógico desse agrupamento mais pequeno, que por força da lei, continua em
funções e com todas as suas competências.
O Conselho Geral da
unidade agregada, talvez por confiança excessiva na sua capacidade de
representação e auto-convencimento do seu conhecimento profundo da nova realidade, recusou pedir ou ouvir esse parecer, que, da leitura dos
reclamantes (e quase todos os docentes do agrupamento extinto assinaram um
documento nessa linha), era obrigatório mesmo se não vinculativo.
No processo de contestar
essa decisão, os documentos consultados permitiram concluir, além disso, que a eleição dos
pais e encarregados de educação para o Conselho Geral, não ficou devidamente
registada e que eventualmente foi feita de braço no ar ou pior… Isso torna
inválida a eleição dos seus representantes e os actos em que tenham
participado.
Havendo docentes que se
queixaram desse atropelo, às regras democráticas e de prática administrativa - porque eleger membros de um conselho geral faz com que a assembleia geral dos pais de um agrupamento seja um órgão administrativo diferente da assembleia geral das associações que até podem ser várias -, o
próprio Conselho Geral, através da sua presidente (eleita também por esses
membros cuja legitimidade se questiona e por isso questionável) veio sugerir que era preciso corrigir a
eleição mal feita, chegando a convocar uma reunião para tentar (mal), por via de
ratificação, corrigir a asneira.
Colocado o assunto à
Direcção de Serviços da DGESTE no Norte esta emitiu um parecer de que se deduz
que esse serviço não acha mal que as eleições sejam feitas de braço no ar.
Uma pérola do
estilo … uma no cravo, outra na ferradura.
Curiosamente o serviço é
dirigido por um antigo dirigente e ilustre militante de um dos partidos que (bem,
mas com má consciência, como agora se vê) foi dos que deram lições de
democracia ao PCP, impondo por lei o fim nesse partido das votações de braço no
ar.
Na sua capa de titular
de um órgão administrativo, e contra a lei que o expressa literalmente e sem
necessidade de aclarações, já parece que acha que, antes de anular os actos de
um conselho geral, em que boa parte dos membros não estarão regularmente
eleitos, precisam de ser ouvidas, eventualmente para declarar que está tudo
bem, as associações de pais e encarregados de educação (que promoveram a
eleição mal feita, mas não são formalmente os eleitores). Ouvidas, vieram dizer
que estava tudo bem. Uma delas até disse num texto que tem algum latim jurídico embora pouca consciencia de liberdade, que o senhor docente é que estava a abusar. Tem graça...
Na verdade a ser alguém
ouvido eram os eleitores (que são todos os pais), havendo novas eleições e
anulando tudo o que já foi (mal) feito (que sempre pode vir a ser ratificado
depois, feitas as eleições legalmente).
E assim administrativamente
se consagra a captura de representação em que os dirigentes associativos
substituem os representados e uma nova forma de corporativismo em que os
dirigentes das associações fazem eleições quase entre si (num universo
potencial total de uns 2000 votantes).
Os partidos andam a
funcionar da mesma maneira e não admira que assim depois as associações de pais
gerem fenómenos albinos …..
Como os eleitos do
Conselho Geral são eles próprios os dirigentes associativos que se
pronunciam sobre a sua própria eleição, só na expectativa jubilosa de ingénuos, por si próprios declarariam
que foram eleitos de forma irregular. Ou isso, ou serem masoquistas…..
Esperemos, por outro
lado, que como membros do Conselho Geral não possam nunca achar e votar de
braço no ar que o senhor docente que se queixa disso deve in casu poder ser saneado….
O saneado sempre poderia
argumentar que foram irregularmente eleitos, mesmo se eles próprios são
convidados pelo MEC a confirmar a regularidade da sua eleição, pronunciando-se
em causa própria sobre um parecer sobre a sua própria eleição. E calculo que para sanear alguém se lembrariam do
voto secreto…. Confuso…. É o que acontece quando a democracia morre na raiz.
O ridículo realmente não
mata….sequestra a mente e tolhe a liberdade.
E a distopia de Fahreneit 451 talvez não esteja assim
tão longe….
[1] O Acórdão do Tribunal constitucional sobre
isso está publicado em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030304.html
. Nessa altura o PSD e o CDS defenderam o tribunal constitucional.
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