vistodaprovincia

3.13.2023

A bondade, o perdão e o tom de voz

 Comentário a sabedoria e aforismos da Internet (I)

A bondade está no coração e não no tom de voz, gente boa pode ser explosiva e ser entendida como escandalosa, ao passo que gente má pode ser silenciosa e calma com aparência de santo.”


O site O pensador que publica citações com muito sucesso (porque o aforismo voltou a estar na moda) e que, genericamente, não é de fiar, atribui esta frase, que tem inúmeras versões pelo Instagram e Facebook, a uma tal Maria Baptista.


Os aforismos estão na moda por causa das redes sociais, mas também por causa da necessidade patente que as pessoas têm de reflexão ética. E os sites perceberam o furo e vai daí há n sites de citações e aforismos, pouco fiáveis na maioria. 


Como eu sou um chato com tendência incorrigível para a filosofia, prefiro aforismos com base em Kant, ou Marco Aurélio ou Sócrates (até a Bíblia, nestas coisas da bondade, tem fraseado com proveito).


Algumas pessoas, que estes dias (a frase teve um aumento de circulação desde finais de Fevereiro) publicaram estes dizeres vão ficar muito ofendidas comigo. 


Mas não têm razão e sempre podem publicar a frase “Os chatos podem ser bondosos, mesmo se andam às voltas com frases que são tão bem talhadas para nos livrar da culpa em discussões.”


Na verdade, esta brincadeira pseudofilosófica não diminui a minha estima, antes mostra que é grande. Leio com atenção o que escrevem, como ouço o que me dizem (quando dizem alguma coisa).


Pode parecer que brinco com a frase, mas na verdade estas lérias são só uma tentativa de humor de um chato. Que, por definição, não tem graça. 


Maria Baptista, autora ou capa de autor anónimo?


A Maria Baptista deve ser muito religiosa, a julgar por outras citações, mas engendrou uma frase com muito que se lhe diga numa escola. 


Quando os miúdos fazem asneira, digam lá que não tem propensão a castigar mais o que protesta? O que está calado, muitas vezes, safa-se melhor.


Uma lição que eu nunca aprendi, calar-me. Até porque algumas das maiores maldades que fiz na vida resultaram exatamente de me calar ou abster e não dizer a plenos pulmões o que devia.


Mas a minha homónima, (sou Baptista no meu último apelido, que não uso, e, pelos vistos, a julgar por outras citações, a senhora é Maria Miguel), se é que foi ela ou sequer existe, escreveu uma frase que se poderia aplicar bem a mim.


Falar alto maldoso: defeito ou feitio?


O primeiro contacto analítico com a minha voz foi pelos 15 anos quando fiz “testes” para uma rádio local. O micro nem estava com muito volume, mas umas palavras minhas fizeram saltar os ponteiros das traquitanas do estúdio.


O meu tom de voz está sempre condicionado por essa realidade. Tenho uma voz forte que consigo manter forte sem me cansar (voz de sargento, que dá muito jeito para as manifestações) e dar aulas agrava o problema. 


Falamos alto também pela má qualidade da construção das salas, que reverberam e agravam o efeito de pequenos ruídos.


Assim, falo alto e, quando me irrito ou distraio, deixo ir o volume. Quem me conhece, já sabe como isso é. E, como falo depressa, às vezes parece que estou a ralhar. E não estou.


Na vida familiar, tenho tendência para controlar sem problemas, nem sei bem porquê.


Mas a Senhora Maria tem razão num ponto, à conta disso, a minha bondade, que tento ter, já foi posta em causa. 


Ela é posta em causa muitas vezes. Mas a voz alta já ajudou. 


A Maria Baptista não tem razão na sede anatómica da bondade (não o coração, mas o cérebro) mas perdoa-se-lhe a metáfora, dado que alguma coisa acertou.


Tautologia e falso paradoxo que gera outras confusões se seguido à risca


Na verdade, a frase é uma tautologia (centrada num falso paradoxo) que joga com um fenómeno essencial na ética: não sabemos nada sobre os outros, senão o que eles nos dizem ou os vemos fazer. E se dizem a berrar é capaz de não ser sinal bom. Ou pode ser bom, por não ser indiferença.


Ou não, depende. Podem estar magoados. E até se podem arrepender. A ética e a bondade não se medem em decibeis ou na dimensão dos silêncios.


Esta tautologia está no rol de frases do mesmo tipo que dizem: "se alguém que fala contigo desaparece, não procures" ou outras do mesmo calibre da sabedoria moderna do Amor líquido, que acha que 2500 anos de filosofia não interessam nada.


Ora o paradoxo é que para o desaparecido, não o procurar, é também desaparecer do lado dele.....


O melhor é ouvir, procurar e entender as palavras e concluir. Mesmo que berradas. E até pode haver proveito em avaliar as não ditas.


Eu ando com dúvidas sobre a eficácia das palavras, mas tento sempre comunicar com os outros, mesmo se falho. Por isso sou chato e mandado calar.


Eventualmente é sempre melhor responder em tom baixo (o que, para os que sejam influenciados pelo pensamento de Maria Baptista pode indiciar maldade). 


Como se verifica, num diálogo, o aforismo de Maria Baptista ou leva à submissão (“eu falo alto e sou bom e tu calas-te porque és mau”) ou à peixeirada (2 pessoas boas só poderiam falar a berrar uma com a outra, para não ficarem dúvidas).


A bondade fica sempre no limite das palavras


A bondade não tem nada a ver com a voz, mas tem a ver com as palavras. Um discurso justo, berrado, pode soar maldade. Mas são as palavras e seu significado que fazem o mal.


E, por isso, ditas baixo ou não ditas podem ser piores. Nem há a desculpa da impulsividade do berro.


Mas o tom de voz não tem nada a ver com a ética. Aliás, por essa ordem de ideias, os mudos não poderiam ser maldosos e os surdos nunca experimentariam a maldade dos outros.


A ética é coisa mais profunda e substancial. E a bondade é coisa relativa. 


Atos e não pessoas 


Na verdade, não há gente boa ou gente má: há atos bons e atos maus. 


Hitler era bondoso para a sua cadela e Oscar Schindler era um aldrabão e traidor à mulher. 


S. Pedro negou Cristo a berrar e São Paulo perseguia cristãos, mas parece que falava pouco. Não sei se baixo. Depois fartou-se de falar e ainda era mais chato que eu.


Essa é a base da humanidade que temos de ter com os criminosos: partilhamos com eles, mesmo nós, os de cadastro limpo, a natureza essencial de fazer o mal e o bem (seja aos berros ou em silêncio). 


Uma execução legal é uma coisa má, mas é feita em silêncio. Quem abandona, fá-lo em silêncio e é um ato terrível e quase sempre difícil de perdoar.


E resta a misericórdia, coisa que soa muito religiosa, mas que até a Igreja esqueceu nesta questão das vítimas de pedofilia, para os que sofreram às mãos do clero.


Mas uma frase sobre misericórdia ou perdão, ideia muito mais complexa do que o maniqueísmo bondade/maldade, não teria tantas citações como a da Maria Baptista, por excesso de filosofia. 


Mas até as ideias abstrusas e contraditórias de Maria Baptista (é ver as outras citações) podem ser a base para refletir como tentei mostrar neste devaneio.


E fica a citação, que resume o essencial, dita por Sócrates, depois de julgado e condenado à morte. Platão  dixit. 


Uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida.” 


(texto inspirado numa coisa que não devia ter visto)

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