Uma visão negativa sobre o ECD que não fala de salários mas de escolas.
Na discussão sobre o Estatuto da Carreira Docente muito se tem falado de salários, avaliação, progressão e criação de hierarquias. Pelo meio houve umas alusões à tropa, à qualidade eventual dos que chegarão ao topo da carreira e muitos sinais de empolamento da discussão. Aliás, caí logo na primeira frase no erro de chamar à questão “Estatuto” porque o que o ministério propunha no início era um “Regime legal” porque, como todos sabem, os professores são uma classe tão desqualificada que nem estatuto deviam ter.
Com esta reflexão tentarei fugir a estes temas e, utilizando um dos leitmotivs do discurso da Senhora Ministra, falar dos efeitos do caminho que se quer trilhar sobre as escolas e sua gestão como organizações.
As escolas têm hoje um processo de escolha de órgãos de gestão democrático e electivo em que cada parte escolhe os seus representantes nos órgãos. Tal sistema resulta de uma lei feita com grande protagonismo do actual partido do Governo. Sou muito crítico desse sistema actual, mas como não acredito em revoluções insensatas, acho que se deve ponderar melhor o sentido de mudança que sobre ele anuncia a proposta de ECD do Ministério. E isto antes de deitar o sistema actual para o caixote do lixo.
O sistema actual
Assim, hoje, a Assembleia de Escola, órgão regulador do sistema organizacional, é eleita em listas separadas de docentes, funcionários, pais e encarregados de educação e alunos (no secundário). O Conselho Pedagógico, órgão principal da coordenação pedagógica, tem representantes dos funcionários, dos pais e dos alunos e maioria de representantes de docentes (escolhidos pelos seus pares e que são os coordenadores dos departamentos curriculares de que tanto se tem falado). O Conselho Executivo é eleito por professores, funcionários e pais e encarregados de educação (e alunos no secundário). Ao lado existe um órgão administrativo que tem 2 membros do Conselho Executivo e o chefe dos serviços de administração escolar (na voz do vulgo o “chefe da secretaria”).
O Conselho executivo é eleito mas existem pré-requisitos de candidatura (ou os candidatos a presidente têm um curso de administração escolar, ou 3 anos anteriores de mandato num órgão de gestão). Aliás, a lei que isto prevê recomendava a generalização da formação como requisito prévio de acesso à função de gestor de escolas. Os diversos ministérios, e principalmente os titulares das direcções regionais, têm utilizado diversos alçapões da lei e permitido, e até sustentado, candidaturas de pessoas que não têm os requisitos. Estou até envolvido num caso judicial em que o requisito aceite foram pouco mais de 200 dias de exercício de funções de gestão para alguém que, não tendo formação em gestão escolar, tendo sido antes funcionária da Direcção regional respectiva, foi destacada para uma escola na expectativa de vir a ser eleita. Como nota, diga-se que o tribunal condenou o Ministério em primeira instância porque a candidata que este defende não tem requisitos para ser eleita mas quem tanto fala de qualidade recorreu, declarando a quem quiser ler, que os tais cerca de 200 dias em funções (ainda para mais limitadas porque interinas) são o bastante para saber gerir uma escola.
Dar poder às escolas, como diz a Senhora Ministra, pode parecer uma ideia interessante e generosa mas sofre de vários problemas, se for feito só com base em ideias do senso comum. Em primeiro lugar, pode ser passar da fome à fartura. De um ministério centralista podemos passar a uma desregulação do sistema em que a sua gestão se atomiza e fica entregue a pessoas designadas localmente, sem critério (se a aplicação destes for parecida à actual) e virtualmente inamovíveis e incontroladas.
Dar poder a quem e como?
É muito curioso que em várias das formulações do Ministério sobre o Estatuto, este enuncie como direito dos professores “ser eleito nas eleições que a lei preveja”. Esta formulação inclui o que Saramago chamaria um sub-tom. Na verdade, o que anuncia é que a lei não há-de prever muitas eleições. Na verdade ao enunciar um direito prevê uma limitação. E se, em princípio, e sem uma discussão do sistema concreto, não se pode ser contra ou a favor, a formulação anuncia problemas e a instalação definitiva do caciquismo e compadrio na gestão das escolas.
O novo modelo de carreira, que a Ministra confessou em recente entrevista ao Canal 2 ser decalcado do do Ensino Superior, tem todos os seus defeitos sem ter nenhuma das suas virtudes. No ensino superior ninguém chega ao topo da carreira sem um doutoramento, no ensino básico e secundário o critério dominante vai ser o tempo (em paralelo à tropa como muito bem lembrou o Senhor Primeiro Ministro). Professores com formação e qualidade reconhecida, mesmo no contexto do novo modelo de avaliação proposto, vão ser ultrapassados por outros só pelo correr do tempo. A antiguidade será claramente posto e critério de poder. Aliás, a Senhora Ministra não o esconde, ao equivaler abusivamente recorrentes vezes no discurso antiguidade com experiência e qualidade (o que não são obviamente sinónimos).
Para não complicar, exemplifico só com um caso. Quem é mais experiente: um professor A com 20 anos de serviço na mesma escola sócio-economicamente favorecida de um bairro central de Lisboa ou outro, B, com 12 anos de serviço que percorreu nesse tempo 6 escolas da cintura urbana do Grande Porto? E se o B tiver especializações em administração escolar e gestão ou mestrado na sua disciplina, além do curso de licenciatura da sua disciplina, e o de 20 só formação básica na sua disciplina, quem merecerá mais ser ouvido na definição da gestão da sua escola? E se o de 20 anos for um ex-estudante medíocre de 10 na sua formação inicial e o de 10 anos um esforçado aplicado estudante de 17? (Para mim os dois devem ser ouvidos mas não sou eu que ando a encher páginas de jornais com teorias de mérito ao poder).
É este tipo de casos muito frequentes que a banalidade da análise da imprensa sobre isto está a esquecer, iludida pela suposta promoção do mérito com que a Senhora Ministra embandeirou.
A sua ideia de gestão de uma escola, destinada a colocar nas funções de coordenação só os professores titulares resultará em que o Professor A possa ser, porque pode ser professor-titular (tem 18 anos de serviço), director da escola e desempenhar qualquer outro cargo nela (e coordenar e avaliar o professor B). O B só pode ser Director de Turma (mas talvez nem possa coordenar os seus colegas com essa função, nos termos da proposta ministerial do Estatuto). Nunca se poderá sentar num conselho pedagógico (a não ser que seja afortunado e consiga chegar a professor titular o que, no mínimo, e com muita sorte – e nenhuma doença -, lhe levará uns 6 anos mais) e a sua opinião dificilmente será ouvida e mesmo que o seja nunca será decisiva ou relevante em qualquer discussão de gestão da escola. Estará condenado a ser um eterno subordinado, mesmo tendo conhecimentos, formação e experiência (12 anos não é assim tão pouco).
No ensino superior se fosse só assistente teria possibilidade de se sentar como tal no Conselho Pedagógico e sabia que, ao concluir o Doutoramento, estaria por direito no Conselho Científico. No modelo que o ECD do ministério defende ainda vai ter um forte incentivo a calar-se e não fazer ondas, ainda que veja asneiras a ser postas em prática, pois quem o vai avaliar são os professores titulares (que serão os únicos autorizados a fazê-las).
É este o modelo de qualidade que o ECD vai promover. Uma escola dirigida por uma suposta elite, não apurada pelo mérito, e que ainda para mais, por ser pequena, se vai eternizar nos cargos de coordenação por falta de alternativas. Assim, como alguns departamentos curriculares terão muito poucos titulares, o resultado será que os seus coordenadores ficarão vitaliciamente nessa função, o que, como se sabe, é um excelente meio de promover “a inovação educativa e a fuga às rotinas que conseguirão incluir-nos nos rumos da globalização e promover a qualidade das aprendizagens” (blá, blá, etc, etc).
O mais chocante é que o modelo de avaliação de desempenho previsto, supostamente tão rigoroso, prevê que um inspector avalie os referidos coordenadores mas não tira a consequência mais óbvia que é que os subordinados possam por inquérito ou questionário (ainda que anónimo) dar o seu contributo para qualificar o desempenho dos que lhe prestam o serviço de os coordenar. Os pais poderão evidenciar o seu juízo mas os pares não. Assim, se solidificam doutrinas hierárquicas.
Esta perspectiva sobre o poder interno e organização das escolas não tem sido falada na discussão do ECD, mas como não acho que é apenas pelo dinheiro que os professores se motivam, acho que merecia uma resposta e ser analisada. A perspectiva de, tendo qualidade ser subordinado toda a vida, não é boa nem para as organizações burocráticas, quanto mais para uma escola que devia ser uma “organização-aprendente” por excelência. E um professor pode hoje não dar muita importância às formas de participação que lhe estão acessíveis mas dará quando as perder.
E será que algum defensor da proposta de ECD do Ministério me consegue provar que o caso que expliquei é impossível? Ou sequer que não vai acontecer muitas vezes?
Luís Sottomaior Braga (professor profissionalizado e do quadro do 1º Grupo – Português e História, licenciado em História pela UP, com 11 anos de serviço, com especialização em Administração escolar e outras pós-graduações, que pelas suas próprias contas só será titular, isto é, só ficará a 3 patamares a meio da sua carreira antes de 2017, altura em que terá 45 anos, e se morrer algum colega de grupo na sua escola).
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