Ministério da educação impede aos professores que estudem e tem apoio em sentença de tribunais
Os professores
são gente tratada pelo Estado, mesmo entre os funcionários públicos, como
inferiores a aviltar.
Enquanto há
gente que nem estuda, e com equivalências folclóricas ou turísticas acorda
licenciado, os professores, que decidam estudar mais, encontram obstáculos em
interpretações restritivas da lei e no seu Ministério (titulado da Educação),
confortados por tribunais que aceitam olhar para o lado em relação à Constituição.
A primeira
nota prévia sobre o que vem a seguir é que não sou licenciado em Direito (e,
como verão, se quisesse, não podia, sendo professor). Logo não tenho realmente nenhum
conhecimento técnico que me permita discutir direito com os tribunais. Mas sou
povo e os tribunais administram a Justiça em nome do Povo. E como Povo (ignorante) gostava
de entender melhor. Porque o Povo tem o direito de querer saber como os
Tribunais chegam às suas conclusões e de fazer com que elas sejam discutidas. E já agora como o MEC gasta o seu dinheiro a litigar, supostamente em defesa do interesse público.
Comecemos pelo
princípio do caso.
Há uns anos, a
referência ao Estatuto do Trabalhador Estudante mudou no Estatuto da Carreira
Docente, aplicável aos professores, e passou a constar uma condição para a sua
atribuição que, na prática, permite ao patrão “Estado”, representado
pelos Diretores de Escola, condicionar a matéria que os trabalhadores, que se
candidatem às facilidades de horário para ir a exames e aulas, escolhem
estudar.
Com a
introdução de alterações, operada por iniciativa da nossa velha e prevaricadora
amiga Lurdes e do muito assíduo compagnon Walter Lemos, passou a constar da lei,
nos termos do que se dispõe no art.º 101.º/1 do ECD, que o Estatuto de
trabalhador-estudante só pode ser atribuído aos docentes que frequentam o
ensino superior com vista a obter grau académico ou pós graduação destinada
ao desenvolvimento profissional da docência, isto é, “com vista a
melhorar o seu desempenho enquanto docente” (na interpretação do
Ministério).
Imaginemos que
sou funcionário de um café e decido estudar Ciências da Educação. O meu patrão
nada tem a ver com isso. Desde que cumpra os requisitos gerais tem de me
permitir usar o Estatuto de Trabalhador Estudante, dentro das regras gerais dos
restantes trabalhadores. Desde que cumpra as regras e os critérios de
assiduidade e horários não tem qualquer patrão o direito de interferir com a
minha escolha do que vou estudar. Pode limitar até a concessão dos direitos do
Estatuto, se houver muita gente a querer estudar ao mesmo tempo, mas não pode
dizer: “tu não tens direito porque estudas algo que acho inútil para o
trabalho que fazes!” (chama-se a isso liberdade de aprender e é um direito
constitucional).
Se for um
funcionário das Finanças, trabalhador em funções públicas, como também são os
professores, e se quiser estudar agricultura ou teologia, como a lei que se lhe
aplica remete para o Código de Trabalho, em nenhum ponto alguém lhe vai
perguntar se o seu exercício do direito de estudar e beneficiar do Estatuto,
previsto nesse Código, é útil para o serviço ou desenvolvimento profissional
nas Finanças.
Contudo, um
professor de Inglês do 2º ciclo que decida, na sua liberdade de aprender,
estudar Filosofia, Artes ou História da Música pode não beneficiar do Estatuto
e dos direitos que este consigna aos cidadãos. Basta, para isso, que o diretor
da sua escola embirre com ele e decida que, como ensina Inglês, o grego
Aristóteles ou o alemão Kant ou os espanhóis Goya ou Picasso não interessam
nada e os Rolling Stones tanto podiam cantar em chinês como em Inglês, isto é,
que estudar o curso que o cidadão escolheu não se “destina ao
desenvolvimento profissional da docência”.
Isto é, o
Estatuto do Trabalhador Estudante, que visava proteger a liberdade de aprender
dos cidadãos que trabalham passou a ser, no caso dos professores, atribuído em
função dos interesses do empregador público (para os comuns mortais, o patrão).
Naturalmente
que esse conceito de “se destinar ao desenvolvimento profissional da
docência” é geral e indeterminado e pode gerar todo o tipo de
arbitrariedades que ficam na mão dos diretores.
Como
uma coisa que não interessava nada está a dar problemas com apoio judicial….
Na altura em
que a luminária walteriana pôs o aleijão em forma de Lei, alertei no debate
nacional sobre educação, organizado pelo CNE, para esse problema.
O post ficou
no site do Conselho Nacional de Educação e teve alguns comentários.
Fiz menção do
problema aos deputados, aos grupos parlamentares e a alguns sindicatos para
verem a linda obra que lá constava e fazerem o seu serviço. Continuo a achar certo
(mesmo com algumas correções, por causa do tempo que passou – foi em 2007!) o essencial
do que lá escrevi.
Ninguém ligou
e a lei continua a dizer o mesmo. A menção é discriminatória dos docentes e, a
meu ver (e como disse não sou jurista e, como verão, aos juízes esse detalhe da Constituição nem
suscita grande interesse), essa lei é inconstitucional: porque é que só aos
professores o patrão pode controlar a matéria dos estudos que escolhem para
efeitos de atribuição do Estatuto de trabalhador estudante? Alguns argumentam
que é porque já tem licenciatura, num país em que ainda há poucas… mas isso
seria absurdo de aceitar porque muitos funcionários das finanças também são licenciados
e a lei não os discrimina assim, por exemplo.
Mas nunca
tinha ouvido nenhum caso concreto de aplicação da Lei nos termos em que W. Lemos a criou e
achei que o bom senso de interpretação não restritiva de direitos tinha
prevalecido e, portanto, o assunto estava morto e que se aceitava que a norma
era uma bizantinice de um tempo acabado. E que insistir nisso ía ser uma
bizantinice minha.
Hoje, quando
pesquisava o assunto, encontrei um acórdão de 2014 sobre um caso ocorrido para
os lados de um agrupamento de Seia.
Nele, o
Supremo Tribunal Administrativo adopta a interpretação restritiva de direitos
que temia que vingasse: um professor queria estudar Direito (estava no 2º ano) e
queria adaptação de horário para isso. Requereu e foi negado.
Acolitado pelo
Ministério, depois do professor ir para Tribunal, o diretor veio alegar com base
na tal norma.
O professor
era de educação física (facto muito destacado no texto das alegações do MEC,
quase arremessado num tom gozão, como se fosse agressão anunciá-lo, .... Mesmo muito
feio, ler estas coisas do “nosso” Ministério).
Queria o docente estudar
Direito porque quereria mudar de carreira e esses estudos jurídicos não se
destinam ao desenvolvimento profissional da docência, sentenciou o Diretor. Calhou embirrar com o Direito mas podia ser outra coisa qualquer. No limite até um curso de Educação de Adultos podia ser prejudicado porque um professor de crianças não vai ensinar adultos e ele, Diretor, é que distribui o serviço....
A primeira
instância deu razão ao professor mas o MEC recorreu para o Tribunal Central Administrativo
do Norte e este, concedendo provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida
e o professor perdeu. Recorreu para o Supremo e voltou a perder.
As minudências
da decisão estão no link anexo e vale a pena ler e arrepiar os cabelos. http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3b8863af54fede1180257cb5004d59cf?OpenDocument&ExpandSection=1&Highlight=0,agrupamento,de,escola#_Section1
É triste, por
exemplo, ver a passagem em que o Ministério da Educação (e do Ensino
Superior!!) se queixa de si próprio, para conseguir prejudicar um professor, de
que “Houve proliferação, nas Universidades, de muitos cursos de pós
graduação e, também, nos últimos anos, temos assistido a uma maior oferta
formativa no âmbito do ensino superior (licenciaturas, mestrados e
doutoramentos), quer no emergir de novos cursos que surgiram quer, ainda, a
instâncias dos pré-existentes, quer no sector público quer no privado.” (e
não falemos de falta de gramática…)
Como o Estatuto
da Carreira Docente é uma lei especial para os professores, pode tirar direitos
que outros têm, (e também penso que pode, mas talvez não devesse poder tirar
dessa maneira): essa é a essência da posição do Ministério.
E por isso: “Queres estudar? Temos de te dar autorização para o tema que escolheres (nem a minha Mãe, que me pagou o curso, me quis tratar assim).”
E por isso: “Queres estudar? Temos de te dar autorização para o tema que escolheres (nem a minha Mãe, que me pagou o curso, me quis tratar assim).”
O significado do caso e a necessidade de mudar a Lei
Crato é tão
parecido com a Lurditas que usa literalmente as leis mal feitas que ela deixou,
até ao limite da alegação e contralegação. E, dizendo-se liberal, enche a boca
com liberdade de escolha de escola, mas aos professores não deixa escolher nem
o curso….
E não deixa de
ser irónico ler como um Ministério da Educação (!!!) alega até ao
Supremo contra o direito de trabalhadores seus estudarem e porque quer escolher
o que estudam e ver se está conforme aos seus desejos.
E tendo, por
outro lado, pela Lei, o dever de lhes dar formação, esquiva-se quanto pode….
E o monumento ao cinismo do texto, que o Supremo consagrou, é dizer-se que o professor poderá até estudar o que quer mas sem beneficiar do Estatuto, que lhe permitiria ir a algumas aulas e ir aos exames.
Talvez isto
tenha a virtude, do agrado do Governo, de animar a atividade económica das
universidades certificadoras em que nem se precisa ir às aulas….
Quando tive
uma perna partida também poderia correr…. Se não tivesse a partido a perna….Neste caso o MEC parte-as, mas alega que isso está muito bem...
E mesmo contra
a douta opinião do Supremo Tribunal Administrativo, eu, Povo ignorante, continuo a pensar, depois de
ler o interessante texto, que aos professores continua a valer a pena lutar
contra isto no domínio legal, apesar desta decisão peregrina e incompreensível
de dar razão ao MEC, contra a liberdade de aprender dos seus funcionários. Não
pelo caso concreto, que não conheço fora dos documentos, mas pelo princípio:
1º Porque nenhum
outro trabalhador português tem de dizer a outro patrão qual a razão porque
estuda certo curso (esse é um limite claro do que é a liberdade constitucional
de aprender). Porquê só ao patrão MEC se permite tal tutela arbitrária?
2º E também
porque, e isso é o mais curioso: mesmo materialmente, a argumentação que impede
atribuir o estatuto de trabalhador estudante aos docentes, por estar em causa,
no concreto do caso, o curso de Direito, é disparatada, porque, afinal, sendo
funcionário público, não interessa que aprenda a conhecer leis e regulamentos?
Afinal, na sua profissão, que é uma função pública, não existem tantos e tão
difíceis de entender ou só “desenvolve na docência” o que se ligue
diretamente aos alunos e caia no goto do diretores?
Imaginemos:
Direito não pode (porque pelos vistos disse que queria concorrer para a Inspeção… diz-se
a dada altura, coisa perigosa, que parece ter sido o que desagradou ao Diretor)
mas, quem sabe, Medicina chinesa já podia porque, afinal, o diretor talvez viesse
a achar que queria um jeitoso a saber acupunctura para ajudar nos entorses dos
alunos.
A verdade é
que da Constituição continuo a achar que resulta que pode estudar tudo desde
que, em resumo, não reprove e seja assíduo.
O Supremo
conclui com uma passagem (está bem perto do fim, podem ler), que parece querer elevar
no discurso o estatuto dos docentes mas que acaba a achincalhar (creio que só
no sub-tom, como diria Saramago, já que pelo muito respeito que tenho a quem
escreve assim, me custa a aceitar que houvesse intenção de o fazer):
“Sendo
assim, e sendo que a situação dos docentes não é comparável à dos restantes
funcionários do Estado, designadamente à dos porteiros ou contínuos da
Escola (exemplo escolhido pelo Recorrente) não admira que em cada um
desses casos a concessão da condição de trabalhador estudante tenha
enquadramentos legislativos próprios visto a mesma visar objectivos diferentes.
O que justifica a inexistência de identidade de requisitos naquela concessão e
que se lhes possa dar um tratamento diferenciado sem que aí se possa visionar a
violação do princípio da igualdade.”
Eu visiono e bem claramente.
Mas às tantas
alucino por não ter as sinapses preparadas por não ter feito o curso de Direito
(e, pelos vistos, não poder se quisesse….).
E penso mais
duas coisas: quanto custou tudo isto ao contribuinte (será prejuízo menor que o
que alegadamente levou a proibir o professor de estudar?).
E já agora, no
centro da matéria do problema: se todos os professores podem, em teoria, ser
chamados a fazer processos disciplinares (artigo 208º, nº1 da LTFP), que os
diretores instauram cada vez mais, e talvez sendo útil que os instrutores deles
tenham formação jurídica, não será útil ao Agrupamento de Seia que algum docente estude
Direito para que saibam desempenhar essa função que agora é sua (e que até
justifica que deixem de dar aulas, a que não podem faltar, nem para estudarem)?
Se fazer processos
disciplinares a alunos, professores e outros trabalhadores é uma função de
qualquer docente, não será o estudo que o tal professor de Educação Física andava
a fazer destinado ao desenvolvimento profissional da docência?
4 Comments:
Como sempre, um texto brilhante!
Boa tarde Luís,
infelizmente senti na pele uma história semelhante.
Este ano desempenhei funções de professora da AEc de inglês, enquanto frequentei o 2º ano de Psicologia. Negaram-me o estatuto de trabalhadora-estudante, com base nesse mesmo argumento estapafúrdio: psicologia não é educação?! Como?! Sim são dois mundos opostos!... "Ainda por cima, a professora já tem licenciatura em ensino e mestrado pré-Bolonha!"- disseram-me...
Bem, adiante, como não sou de ficar calada, lembrei-me: "Alto, o meu estatuto profissional e respetivo enquadramento salarial também não é de um docente, visto que recebo como técnica profissional!" E assim, exigi que me reconhecessem o respetivo estatuto e assim o fizeram! Na verdade, usufrui muito pouco do mesmo, mas pelo menos agitei as águas!
Acho esta lei uma patetice, ou melhor uma canalhice!
Subscrevo todas as suas palavras e agradeço ter referido este assunto, pois há uns meses em pesquisas, apenas encontrei o acordão que referiu e nenhuma posição, nem sequer dos nossos queridos sindicatos!
Cumps,
Marta
Aqui acontece o mesmo: a diretora do meu agrupamento considerou que a pós-graduação em Administração e Gestão Escolar não contribui para o desenvolvimento da docência e por isso recusou-me o Estatuto de Trabalhado estudante. Mas é sabido que a um certo amigo seu já deu o parecer oposto.
Só me faz lembrar o tempo em que as professoras tinham de pedir autorização para casar!
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