Estamos quase em branco na formação cívica
“Não há sujeição tão perfeita como aquela que conserva a
aparência da liberdade; dessa forma, cativa-se a própria vontade”
Rousseau, Émile
Recentemente numa polémica, essencialmente jurídica, e que, por isso, até envolve tribunais, alguém decidiu, depois de ter publicado um panfleto agressivo, responder, ante um pedido de explicações, com uma fotocópia de um dicionário. Estava em discussão a palavra arbitrário, que o recorte visaria explicar-me. Ignorante como sou, sem dicionário não ía lá. Por acaso é um hábito em que persisto: consultar o dicionário. No caso, nem faria tanta falta, sendo uma palavra que gosto muito. De formação filosófica kantiana, por influência de 3 bons professores de filosofia que tive, sempre me recordarei da distinção que o filósofo de Koenigsberg faz entre livre-arbítrio e liberdade.
Mas não é pelos domínios da filosofia que quero entrar neste texto. Falemos de política. E o horror à política, que se mantém na nossa sociedade como rasto do salazarismo, deve ficar acicatado ao iniciar assim o assunto mas, no caso concreto, embora fossem só eleições com 200 votantes, era de política que se tratava. E isso leva a ter de falar da condição essencial para um cidadão viver numa sociedade democrática em pleno e participar nela livremente: conhecer, entender, reflectir, em suma, ser educado para cidadão.
A pessoa em causa ficou branca de raiva pelo facto de se ter afirmado numa carta numa campanha eleitoral que uma decisão por si que tomada era ilegal e arbitrária. A questão é tão clara que ainda a discuto nas instâncias judiciais (e ganhei na 1ª instância) mas a verdade é que não se pode deixar em branco todo o restante enquadramento que leva a que um requerimento formal possa ser entendido como insulto. E isso tem a ver com a educação para a participação e cidadania, aquilo que supostamente se queria fazer com a área curricular de Formação Cívica, que agora existe nas escolas.
Um dos problemas infantis da nossa Democracia é a má preparação de alguns decisores e o hábito, de matriz também salazarista, de aceitar pareceres de superiores hierárquicos como fundamento para decisões próprias. Pensar pela própria cabeça é o caminho da Liberdade, seguir o caminho que outros apontam com meros argumentos de autoridade, pode ser livre-arbítrio, mas não é Liberdade verdadeira, no sentido ético da palavra. Mas para mudar isso é preciso educar.
No caso concreto do início, a leitura da lei em discussão até é clara, e só mesmo por se achar que seja ignorante, precisaria de dicionário para não ver o fundamento do que se dizia no caso.
A nossa Democracia foi resultante de um processo revolucionário mas, curiosamente, não significou uma mudança radical dentro do Estado e na sua mentalidade burocrática. A culpa não é dos Governos, nem das Leis, nem do sistema, nem de outra coisa que não nós mesmos, os cidadãos.
Na verdade o primado da Lei sobre as determinações internas da administração, grande conquista do século XIX, ainda não reina sobre a actuação quotidiana da administração. E porque nós deixamos, sempre que deixamos passar em branco algo que permita o estado de coisas. Nos serviços de vários Ministérios reinam o ofício, o despacho, a pérola chamada despacho normativo, até o regulamento. São comuns os casos em que pessoas, que deviam ter obrigação de ser informadas (quanto mais não seja porque são professores e às vezes até leccionam formação cívica), dizem que vão consultar a legislação e na verdade vão ler despachos ou até meros ofícios.
Poucas assembleias terá havido em Portugal com a qualidade da Assembleia Constituinte de 1976 e, desde então, ficou claro que, em Portugal, legislação (isto é, Lei, palavra para norma com dignidade elevada) são os Decretos-Lei, feitos no Conselho de Ministros, as Leis da Assembleia da República e os Decretos Legislativos Regionais. Quem tenha feito a velha Introdução ao Direito do 10º ano saberá, por exemplo, o mínimo sobre critérios de interpretação de leis e, pelo menos, terá o senso de perante questões mais difíceis fazer recurso da “advocacia preventiva”, que tanto advoga o actual Bastonário da ordem respectiva, gastar uns euros dedutíveis e perguntar a um jurista livre e só comprometido com o cliente (isto é um profissional liberal). Mas se isto tem a ver com a acção, mais chocante é verificar que hoje existam em Portugal professores que não entendam o conceito de Primado da Lei, não para usar, mas para explicar, que não saibam o que são órgãos de soberania, que não saibam o básico sobre a estrutura das leis e da Constituição, que passem em branco por conceitos básicos dos mecanismos de uma eleição. Que não saibam é mau. Pior é que, mesmo não sabendo, possam ser considerados habilitados para ensinar formação cívica a um nível de ensino desde que estejam habilitados para ensinar outra coisa qualquer. Como a área curricular de educação para a cidadania pode ser atribuída a qualquer professor, e não tem programa em sentido estrito, qualquer um pode dar. Numa Democracia, que quer crescer e em que no sistema educativo tanto se fala de educação para a cidadania, não se podia também mudar isto no sentido do rigor, em que agora tanto se insiste? Esse sim seria um rigor com substância e com futuro.
Luís Sottomaior Braga
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