vistodaprovincia

10.27.2005

Carta de demissão do Partido Socialista

Ex.mo Senhor Secretário-Geral do Partido Socialista,

CC. Secretário Nacional da Organização
Presidente da Federação Distrital de Viana do Castelo
Presidente da Comissão Política Distrital de Viana do Castelo
Presidente da Comissão Política Concelhia de Viana do Castelo
Coordenador da Secção de Viana do Castelo do PS

Peço desculpa pelo tratamento cerimonioso, face ao hábito do vocativo camarada em uso no Partido, mas dado o objectivo desta carta aberta, de outra forma não a poderia iniciar.
Na verdade, e após uma década de militância activa e empenhada venho por este meio expor um conjunto de razões que me levam à decisão que surge como corolário desta comunicação. Numa síntese rápida, posso classificar as razões que me levam à decisão presente em vários grupos:

1. Razões de política geral,
2. Razões de modelo organizacional do partido,
3. Razões de política local,
4. Razões de índole individual,

1. Razões de política geral

O Partido tem sustentado um Governo que sistematicamente ignora pontos essenciais da sua campanha eleitoral, praticando políticas que induzem a um capitalismo desregrado e a uma sistemática desmontagem do Estado.
Se, na Saúde, temos visto medidas de um Socialismo moderno e arejado, em alguns sectores, como por exemplo a Educação topamos erupções de políticas em mantas de retalho, tecnicamente mal fundamentadas e, nalguns aspectos, amadorísticas (veja-se o caso recente, que não desejo transformar em questão essencial mas antes é exemplo de um quadro geral de governo casuístico, das habilitações para o ensino do Inglês no 1º Ciclo).
A actuação junto do funcionalismo público, em que me incluo, pauta-se por uma postura arrogante, desvalorizadora, que falseia os dados acusando-nos de privilégios (mesmo quem não os tem). Na actuação diária da administração encontramos já instalada, em poucos meses, uma prática de decisão, mesmo contra legem, por despacho, prepotente, até contra direitos fundamentais básicos que a Declaração de Princípios elege como bases ideológicas do Partido. Nunca julguei ver o meu Partido a defender, por razões tácticas, limitações tão radicais no direito à greve ou atacar, como quase crimes, a defesa dos direitos dos trabalhadores, a propor alterações para restringir o direito de manifestação ou fazendo com que hoje a expressão “direitos adquiridos”, amputada do advérbio “legitimamente”, que a devia acompanhar, seja encarada em alguns jornais e vozes partidárias como uma blasfémia que, pronunciada, pode dar origem a condenação infernal.
Num socialismo de tipo justicialista até parece que o inimigo são os que servem o Estado e que o objectivo é igualizar todos por baixo.
Se tivesse calhado que, na confusão conjuntural que baralha a acção política, o direito a um salário justo tivesse sido categorizado entre os direitos adquiridos banidos, ainda haveríamos de ver a imprensa amiga arremeter contra tal direito adquirido como contra um privilégio. A verdade é que mesmo muitos funcionários públicos não o têm mas isso pouco afecta a atitude de certos decisores de disparar antes de ouvir ….
A obsessão do défice, que tanto se criticou a Manuela Ferreira Leite e Durão Barroso, tomou os dias da política portuguesa. O PS adoptou-a, mesmo contra o que eram as expectativas dos portugueses. O desemprego é mostrado como fatalidade, o desenvolvimento tecnológico é bandeira que não ondula e o progresso educativo vai ser feito em guerra com os agentes do sistema educativo.
Mas as grandes empresas têm os seus lucros garantidos, os autarcas retalham entre si as verbas comunitárias que esbanjam em obras de fachada e construções de opereta, como acontece sempre que alguém pode gastar sem controlo dinheiro que não é seu, e os que estão munidos de cartão rosado, alegremente, sem currículo ou com o que arranjam na intriga partidária, trepam e entranham-se pelo aparelho de Estado.
O Governo PS, que podia ter lançado uma mudança efectiva na sociedade e ser um momento de arranque contra a inércia, desilude diariamente entre incoerências e injustiças, trapalhadas luzidias e desmentidos de promessas.

2. Razões de modelo organizacional do Partido

Essa desilusão, que tantos partilham comigo, é antiga. Herdeiro de hábitos e estruturas leninistas que definem a organização partidária da esquerda, o PS é um partido hierárquico, com uma lógica piramidal e aparelhista, que pouco valoriza o contributo individual dos militantes e em que práticas instaladas de auto-preservação de detentores do poder provocam desvalorização da participação. À semelhança de outros, aliás, o PS é caciqueiro, faccioso, pouco reflexivo, centralista e muito rígido na organização.
Naturalmente que me poderão dizer que nem todo é assim. Mas basta-me referir o que conheço. Membro de segunda ou terceira linha de órgãos concelhios e distritais, há vários anos, posso demonstrá-lo na prática e por conhecimento efectivo. A recente mudança estatutária em que, entre outros, colaborei com sugestões (aliás, soberanamente ignoradas) não supriu, antes agravou, o problema. Alguns anos passados sobre ela, concluo que o PS é irreformável nesses aspectos e entristece-me constatar que, apesar do meu esforço por persistir, tenha de desistir de contribuir para mudar por dentro.
Há concelhias com centenas de militantes registados em que sistematicamente só 2 ou 3 dezenas votam para eleger os outros tantos delegados (obtidos pelo numero de inscritos). Na prática votam em si próprios para Congressos distritais em que a sua presença distorce totalmente o resultado das votações. O pagamento de quotas continua desregulado e a medida sábia de o centralizar não surtiu efeito.
Os dirigentes eternizam-se e não convocam reuniões (defendendo-se uns dos outros com o pecado alheio). Quando as há, são liturgias de afirmação e de auto-satisfação colectiva para gaúdio de autarcas e dependentes profissionais da política ou então são para escolher listas ou confirmá-las.
E mesmo quando a nível local ou distrital se chega a conseguir aprovar um texto, moção ou medida que fuja um pouco à modorra é só para a emoldurar. Caí na ilusão de ajudar a fazer uma moção para o último congresso distrital da Federação de Viana do Castelo. Muito concreta e com metas mensuráveis foi aprovada sem votos contra, por larga maioria. Nem uma linha foi concretizada.
Infelizmente, e resisti muito a desesperar de poder contribuir para mudar neste ponto, o partido é hoje a nível local câmara de ressonância de autarcas (alguns deles bastante medíocres e razoavelmente incultos) e nada diz a quem ache que a sua cidadania não se resume a discussões localistas. Os deputados são emanações das lógicas aparelhistas locais e pouco fazem fora desse quadro. Não tem luz própria e, em muitos casos, estão nitidamente afastados das realidades locais. E mesmo para abranger essas realidades, as insuficiências da vida partidária são patentes, como se verifica em factos que não são tão irrelevantes como isso: a repetição constante dos mesmos nomes (até suplentes) nas listas, o caso do candidato que concorreu ilegalmente em 2 concelhos ou a coincidência curiosa de a maioria das listas autárquicas terem sido aprovadas no meio do mês de Agosto, que os profissionais de outras coisas que não a política normalmente usam para férias. Formalmente tudo certo, mas objectivamente um arremedo de democraticidade. Antigamente ainda éramos ocasionalmente visitados por dirigentes nacionais para oficiar a palavra do Partido, agora nem isso.
O cúmulo foi atingido pelo caso da candidatura de Mário Soares, em que foi dito que em todas as distritais toda a gente apoia o designado candidato do Partido, matéria que, na verdade, nem sequer foi discutida para lá dos limites dos secretariados (órgãos eleitos em lista fechada por proposta dos Presidentes da Federação). Esse é o exemplo máximo da lógica de decisão de cima para baixo.

3. Razões de política local

A estas deficiências de enquadramento da participação, no âmbito partidário, juntam-se casos concretos de discordância pessoal que mostram contradições entre aspectos da minha consciência e as decisões e práticas do partido. Essas contradições são múltiplas e resultaram numa análise pessoal de vários anos de alguma angústia entre o desejo de ajudar a mudar e a repugnância pelas constatações. Sem abusar da sua paciência, e sem grande extensão, saliento uma: a escolha partidária da demolição do chamado Prédio do Coutinho como símbolo de uma política de suposta purificação arquitectónica do país, chocando prepotentemente com direitos legítimos de propriedade e habitação de famílias e de cidadãos idosos e com fundamentos frágeis e processos atabalhoados. Além de tudo, uma escolha que financiada pelo orçamento de Estado, resulta em conflito evidente com a obsessão orçamentista.

4. Razões de índole individual

Fui dirigente associativo estudantil na cidade do Porto no início dos anos 90 num tempo de luta em que governava Cavaco Silva e a maioria absoluta era do PSD. Nunca escondi a minha simpatia socialista, nem a neguei. Mas, nesse tempo sempre disse que preservaria a minha independência e não seria militante de nenhum partido enquanto estivesse nessa actividade. Era dos poucos dirigentes conotados com o PS nesse tempo numa Federação Académica dominada pelas listas de base partidária. Vários dirigentes destacados, então e hoje, do PS me propuseram assumir a militância até com indicações de apoio em eleições. Sempre recusei por razões de consciência e de cumprimento de um princípio de independência. A minha inscrição no PS foi um acto individual de escolha por adesão aos princípios e à acção politica do Partido. Ao contrário de muitos, que à semelhança de um clube, se preocupam em obter assinaturas sonantes para a sua ficha de admissão, a minha não sei quem a assinou pois foi preenchida ao balcão da sede onde me dirigi.
A decisão da minha saída é também um acto individual e de reconquista da independência de opinião e acção.
Não militar num partido significa uma considerável redução da capacidade de participar politicamente na vida do país. Mas os Partidos devem pensar colectivamente se a forma como se gerem como espaço de participação política vale o esforço de disciplina e de aceitação do inaceitável que acabam por impor. Valerá a pena prescindir da crítica pública das políticas locais, tão evidentemente erradas, em troca da possibilidade de as influenciar internamente, se o partido não reúne, não discute, cilindra em formalismos quem queira discutir e pelo meio há quem chame nomes ou até agrida quem o faça? Valerá a pena prescindir do direito de promover candidaturas independentes, se dirigentes do partido as promovem, anulando outras iniciativas de militantes para conseguir o número de juntas de freguesia dóceis necessárias para disfarçar a fragilidade das estruturas partidárias? Valerá a pena não apontar comportamentos politicamente reprováveis em nome da disciplina?
A conclusão é que não vale.
Um cidadão razoavelmente dotado para o trabalho, com vida própria e carreira, independência financeira, que preze a sua liberdade, não aceita certas realidades que grassam no nosso partido e que incluem a ideia do esmagamento das minorias internas e externas, o endeusamento dos vencedores, o oportunismo, a obsessão com o voto e o esquecimento dos outros aspectos e mecanismos que fazem a vida democrática (respeito pela Lei, tolerância com a diferença, diálogo com os opositores e criação de condições de negociação e consenso).
Da experiência de contacto, que devo à permanência no PS, com socialistas dos que havia antes de haver partido registo uma larga e decisiva experiência formativa que faz com que não renegue a minha passagem pelo PS como experiência nem o valor do conceito que adjectiva o nome do Partido. Lamento é que na prática interna o socialismo esteja ser negado e trocado por pragmatismo e pelas lógicas de exercício do poder interno.
Ás tantas há mais gente que pensa como eu mas não escreve tanto ou sequer se dá ao trabalho de o sinalizar. Ás tantas esta carta vai ter o destino de tanta coisa que vem da província. Desvalorizada, receberá o seu número de entrada e morrerá sem ter direito a ser lida. Nem alcanço que venha a merecer resposta. Finalmente, face à avalancha de novas adesões, que a maioria absoluta deve estar a induzir, talvez seja olhada como uma bizantinice de um obscuro militante de Viana do Castelo. Valho o que sempre vali, o meu voto. Nunca paguei quotas além da minha nem arrebanhei magotes para eleições internas. Muitas vezes estive do lado ou contra o presidente da minha Federação. Tive o destaque que resulta do apoio e o castigo que resulta da oposição. Na minha concelhia já ganhei ou perdi. O partido é feito de muitos como eu. Às tantas mais ou menos um é irrelevante para quem o dirige no topo. Para mim seria mau escrever como última página um acto simples de deixar caducar a militância por falta de pagamento de quota, como se ter sido militante do PS fosse algo que simplesmente se deixa prescrever ou que o meu contributo fosse tão pouco auto-avaliado que nem sinalizasse o fim dele.
Por isso, por este meio solicito que o meu nome seja retirado da base de dados de militantes e que me seja comunicado por escrito o momento em que tal se torna efectivo. Do mesmo modo solicito que me seja indicado se existe algum montante de quotas por pagar.

Lamentando tê-lo maçado com a longa exposição das minhas razões.
Com saudações socialistas,