O Colosso da Rotunda
Uma das ideias mais marcantes de aprendizagem histórica é o conceito de decadência.
Decadência é algo que só que existe na análise do que se passou a posteriori e após um apuramento factual e com distância e ângulo de visão. Isto é, quem, por exemplo, fala da época de decadência do Império Romano, mesmo sendo a ideia discutível, esquece que quem viveu a época não teve consciência aguda desse estado decadente embora os sinais que os historiadores listam também fossem visíveis ao tempo. Assim, a decadência do Império Romano, a ter existido, o que muitos contestam, não começou a uma hora certa de um dia certo mas é fácil de ver que as coisas funcionavam, num determinado ângulo, melhor no tempo de Júlio César do que no tempo em que os Bárbaros penetravam no Império. Às vezes até há ilusões do contrário, como no caso de D. Sebastião, cujo reinado é crismado como de decadência do Império Português e que, antes do descalabro de Alcácer Quibir, acreditava que progredia para construir um novo e fortalecido domínio do mundo.
Os que tiveram a paciência de suportar o arremedo de filosofar das linhas anteriores já dirão que me deixei de falar das coisas de Viana e passei a falar de coisa nenhuma. Mas previno que não, e esclareço que o motivo dos ditos foi uma reflexão peripatética nas ruas da nossa cidade.
O progresso, que se propagandeia como marcando estes anos, assumiu agora uma das suas faces mais notáveis sob a forma de uma revolucionária rotunda rectangular com uma monumental excrescência marmórea num dos cantos. Aliás, a zona onde ela se implanta é bastante malfadada para soluções originais e menos ortodoxas, mas naturalmente progressistas, em matéria de trânsito. Depois da recreativa solução da nominalista rotunda do Náutico, os desocupados condutores Vianenses viram as oportunidades de divertimento acrescidas com a solução produzida para o velho problema da rampa da ponte Eiffel.
A estrela da companhia é o monumento a D. Afonso III, monarca que atribuiu o foral à localidade que hoje é a cidade de Viana do Castelo e que, no dizer de alguns, seria “de grande corpo, de alegre, e senhoril presença, teve olhos mui fermosos (…) e cabelo negro, (…) foi alvo, e bem corado, a fala algum tanto entremetida de gaga, mas cousa muito pouca.” Nessa ordem de ideias o monumento tem traços de fidelidade e claro que ninguém o critica por não tentar ser directamente figurativo (a estátua do Fagundes é-o e não passa a ser mais bonita por isso).
Além de descomunal é alvo, isto é, branco. Falta naturalmente o cabelo negro. Viesse D. Afonso III à terra e, além de corado com o preço que se pagam por coisas daquelas (e tinha esse monarca fama de administrador poupado), a sua fala ficaria bem entremetida de gaga ao ver que aquilo pretende ser uma homenagem. A senhoril presença do trambolho podia ser aproveitada para suporte de semáforos para os engarrafamentos criados pelas saídas tipo funil da rotunda de quatro lados. Assim, um dinheirão em mármore, e nem sequer a pedra cheia de veios é bonita. Os índios americanos sentir-se-iam identificados com a cidade se por cá passassem, agora que assim obtivemos um totem, segundo ouço dizer, por intercessão da empresa que construiu o parque da praça com o nome do Rei (consolemo-nos por o dinheiro não ser público). Para eles, o objecto escultórico seria talvez mais adequado para uma divindade tipo coruja ou mocho do que para um rei mas para não nos enganarmos lá está num dos lados um arremedo de representação das armas reais. A proclamada formosura dos olhos sofreu uma transmutação orientalizada. O multiculturalismo da peça é ainda completado por umas letras douradas de clube de férias latino-americano ou time-sharing algarvio.
A estética, como sabem com mágoas os moradores do prédio do Coutinho, aí bem perto, é muito sujeita a multiplicidade de perspectivas e isso vale para este arranjo viário e o seu colosso (com ambições artísticas do tamanho do de Rodes mas cuja fama não passará dos comentários jocosos aos cartões de boas festas em que a câmara o colocou, ao lado de um texto ousado de elogio ao progresso, a que subtilmente se associa).
Agora para quem tanto fala de discrepâncias visuais no que respeita ao prédio …. Admito que o artista possa ter uma boa teoria para explicar o carácter fálico da peça, que o vulgo já verbaliza com sonoridades bem castiças, mas dificilmente convenceria os gostos rudes de alguns, a que me junto, de que aquilo seja uma comemoração do fundador da urbe. Alguém com visão suficiente para perceber a atractividade, que tanto hoje se gaba deste rincão entre a montanha, o mar e o rio, merecia mais respeito.
Um dos concelhos a sul do Porto, creio que S. João da Madeira, tem numa praça pedonal do seu centro um monumento de forma e tamanho semelhantes, esse, pelos vistos, ao carácter industrioso da sua população. E notícia curiosa das últimas semanas é que o autarca local anunciou que quando houver dinheiro se prepara para demolir a erupção escultórica. Não porque o espírito industrioso dessa cidade esteja em crise mas precisamente porque o seu espírito crítico já não suporta a vista da coisa. E como não mora lá ninguém e o seu dono é o povo da terra pode e deve demolir-se. E a questão é mesmo de espírito e conceptualização. No passado o monumento era um símbolo de progresso. Agora é só feio.
Nós, em Viana, ainda estamos na fase de ouvir discursos em que uma coluna de mármore e o buraco que ela coroa são chamados de sintomas de que estamos a progredir. No passado, e bem, progresso era inaugurar uma linha de caminho de ferro. O progresso que vemos hoje aí é comprarmos o bilhete Viana-Porto dentro da carruagem como se a Estação do Shopping fosse um apeadeiro de aldeia.
A decadência, como lembrava no início, dizem alguns, é uma coisa que quem a sofre normalmente não percebe. Os romanos não pareciam decadentes aos próprios olhos…. e D. Sebastião de cofres vazios e endividado sonhava com um novo império.
Luís Sottomaior Braga