Prédio do Coutinho: um problema de mau cheiro…
Acabo de ler no Jornal que na véspera do dia em que escrevo, em Viana, houve alguma comoção, porque, pelos vistos, em certas zonas da cidade grassava o mau cheiro provocado pela limpeza de condutas da Portucel. O cheiro a gás incomodou alguns, que telefonaram para a Protecção Civil, preocupados com os potenciais riscos que, veio a verificar-se, eram falso alarme.
Curiosamente não vejo a mesma comoção a propósito de coisas que também cheiram mal, que cheiram a antanho e exalam o odor fétido da gangrena dos valores. Falo também do dinheiro de todos nós gasto na produção do boletim informativo da Sociedade Vianapolis “Especial Edifício Jardim”.
Chamar informativa a tal erupção propagandística é agredir os que fazem da informação um compromisso com a verdade e o rigor.
Propagandístico era melhor título para tal exercício de escrita mas nunca na categoria de boletim.
Onde a Pravda poria “Proletários de todo o mundo uni-vos” ou jornais alemães, de certa época, diriam “Hoje a Alemanha, amanhã o mundo”, o autor anónimo chama para capa, por cima de uma foto do Prédio do Coutinho, a frase de F. Nunes Correia “É mais fácil despoluir um rio do que despoluir o horizonte de uma cidade”. A frase deve passar, para quem a foi buscar, como exemplo de eloquência soberana mas, lida em fundo verde, meio demolido, mesmo vinda do Ministro do Ambiente, não consegue escapar ao contexto de banalidade de pensamento que a originou. Aliás, pelo impacto dado à frase devemos em breve ver um anúncio ministerial de que todos os rios portugueses estão despoluídos….pois se é fácil….
Para ilustrar o que a página seguinte titula como um exemplo para o país, às tantas, arranjava-se melhor retórica. Mas os sinais de uma escrita manipuladora, e que não visa levar a pensar, mas dirigir o pensamento de quem estiver distraído, continuam nessa página.
Passemos por cima da duvidosa declaração de utilidade pública que os Tribunais ainda discutem e avaliarão em seu tempo.
Mas reparem aí, no uso característico da palavra “já”: a Vianapolis diz que “já” celebrou acordos de expropriação com 61 dos 107 interessados. Este conceito de interessados reúne em si duas realidades muito diferentes (inquilinos e proprietários). Os estabelecimentos comerciais saíram em Agosto, como era previsível, aliás. Qualquer pessoa que saiba fazer contas verifica que dos 107 interessados 61 fizeram acordo, o que resulta em que 46 ainda não fizeram… já agora. A pergunta a que se exige resposta é: e quantos moradores e proprietários? E os 46 interessados representam que percentagem da área do prédio? Compreendo que a Vianapolis não dê importância ao valor do direito fundamental de propriedade mas é isso que realmente interessa, tratando-se de propriedade horizontal, que se rege pela dimensão do direito de propriedade e não pelo número de proprietários. E até podiam já ter feito negócio com 106 interessados, basta um querer fazer valer o seu direito a morar na casa que é sua e escolheu. E esse um pode representar mais área que 2 ou 3 dos interessados já consolados pela mão amiga do Vianapolis.
As cenas que não vamos querer ver….
No 6º parágrafo, depois de prosa tão rica em pormenores sobre o que já terá feito, o Vianapolis laconicamente diz-nos que “após a saída de todos os residentes” vai continuar a fazer e acontecer em 140 dias…. Mas já agora informem lá como vão fazer para tirar os residentes? Ou será que as cenas que teriam que nos descrever “já” estragavam o conjunto propagandístico …? A acontecer não vai dar fotografias bonitas, tenho a certeza.
Mas ignorando essas previsíveis cenas pouco edificantes, que o recato impede de descrever, retoma-se o fio da lengalenga ilusionista: vamos ter um Mercado Municipal “após a saída de todos os residentes”. Contudo, aqui a memória pesa e pergunta-se: não tivemos já um Mercado Municipal, que foi demolido para fazer as casas, onde se hão-de meter os residentes do prédio, que vai ser demolido, para construir o mercado, que há-de substituir o prédio ….? E se não ficaram cansados experimentem esta outra frase: e será que o mercado não foi demolido para justificar a birra da demolição? Isto é: o pretenso e mal amanhado interesse público da expropriação para fazer o mercado, não é um disfarce do pretexto real da estética e do perfil da cidade que, está mais que visto, não é fundamento de interesse público para demolir? E não há quem diga que mercados no centro das cidades são ideia ultrapassada? E, além de tudo, um mercado a este preço não será contra o interesse público? E é pelo interesse público que o prédio, se tal chegar a acontecer, há-de ir abaixo.
Um texto de autor anónimo
Em foco numas folhas interiores, em que se repete o verde demolido, está a cronologia do processo. Todas as datas referidas entre 1972 e 1976, com textos muito orientados para a conclusão de que o prédio seria ilegal, não interessam nada ao esclarecimento do problema presente: tudo o que de ilegal se possa ter passado nessas datas já prescreveu, e não é por ser ilegal, que o prédio está em risco de ir abaixo. E se isso nada interessa, o que se diz sobre os factos de 1990 em diante, interessa pouco. Quem escreve (e não sabemos quem foi, porque não assina, nem na ficha técnica se identifica o autor dos textos) aproveita a ocasião para dar uma bicada ao presidente da Câmara que nesse ano “não conseguiu financiamento” para a obra de demolição. Mas se ele não conseguiu (fracasso que é, com esta construção frásica assacado à pessoa, cujo nome nem se diz), há quem consiga e aqui vai disto…. leiam.
A parte melhor é o parolismo da referência à Bienal de São Paulo e às suas Des-continuidades. A moda arquitectural pesa mais que as pessoas e para quem narra a história assim, “já” está tudo bem. Sem descontinuidades morais ou pruridos de consciência desalojar 46 “interessados”, é só um pormenor que nem merece citação.
Tudo bem. As imagens valem mais que mil palavras e, por isso, é que na página 3 ou no canto inferior da página 5, o prédio não aparece tão chocante ou inestético como o dizem, e na figura da página 3, assoma do canto o fantasma do pilar da ponte Eiffel que provavelmente merecia como problema um estudo cronológico e, quem sabe, até um boletim informativo.
A descontinuidade irreal do novo mercado
Depois temos a utopia do novo mercado a fazer (este descrito em fundo roxo): “equipamento fundamental”. Mas, curiosamente, entre todas as coisas folclóricas que vai ter e são descritas (até são listados os pontos infraestruturais de água e as passadeiras rolantes – uau!!!) um tão exaustivo boletim informativo esquece-se de nos dizer quantas lojas ou bancas de mercado vão lá caber…. Seria um dado bem mais importante do que saber que vai servir para feiras gastronómicas…. Como diz o autor anónimo da Vianapolis (parece pelo estilo ser diferente do das páginas a verde) “Não basta saber intervir na cidade, é necessária uma atenção redobrada aos usos e costumes dos espaços (…)”. Para os que perderem a sua casa vai ser com certeza consolador saber que podem ir lá comer uma bela sarrabulhada….
O concurso público para fazer o “mamarracho”, palavra que peço emprestada ao que chamarei autor Vianapolis verde, “já” está a decorrer, diz-nos a última página do pasquim. A demolição, diz-se no mesmo sítio, “pode ocorrer imediatamente” após a saída dos últimos habitantes (como vimos não são poucos nem representam minoria do valor do prédio) ….
Agora, o que também já se sabe, é que o caso continua nos tribunais, que os moradores vão continuar a lutar, que ainda não se provou o interesse público do mercado a fazer, senão junto do Ministério do Ambiente, que representa o Estado, dono da Vianapolis. E a existência de um interesse público para demolir, e fazer no lugar outra coisa útil, é a única hipótese de o prédio vir abaixo.
Mas já não me espanta o tom de desespero da propaganda Polis…. Já falta pouco para os prazos acabarem e “já” não há muitas saídas, não é ?…. Tenho cá para mim, e parafraseando o ministro literato, duplamente citado no Boletim, que é mais fácil a Polis extinguir-se, que no horizonte se perfilar o momento final da demolição do prédio.