Da Autópsia de um crime ao pastel….
“Comunidades de aprendizagem em pequena escala permitem às crianças e aos jovens serem conhecidos e valorizados como indivíduos. (…) A comunidade de aprendizagem é apoiada por valores e práticas ambientalmente sustentáveis. (…) Os pais e a comunidade local são vistos como parceiros na vida da escola ou comunidade de aprendizagem. (…) As escolas são comunidades democrático em que todos os envolvidos compartilham a tomada de decisões.”
O nosso primeiro-ministro classificou a alternativa à medida de fecho de escolas e fusão de agrupamentos que o seu governo resolveu tomar como um crime. “Seria criminoso não o fazer” – disse. Se é lícito ao PM classificar de, pelo menos, cúmplices de criminosos os que defendem o contrário do quer fazer, também é lícito a esses salientar a intenção criminosa subjacente ao acto concreto.
A primeira pergunta que ressalta é porque é que, se era um crime assim tão grande, manter abertas as escolas com menos de 21 alunos, só agora, ao fim de quase 5 anos e meio de governação se lembrou de o corrigir?
No domínio da ética é uma pergunta relativamente pertinente.
Isto é o que há a dizer sobre a oportunidade de correcção do alegado crime.
Sobre a natureza do crime convém salientar que a ideia de que escolas com menos de 21 alunos promovem o insucesso, que é o argumento usado, pode ser um exemplo clássico de uma falácia hic et nunc. Isto é, a partir de um conjunto de premissas de observação tira-se uma conclusão em que os termos enunciados parecem ter uma relação de causalidade mas, na verdade, tem uma relação de simultaneidade.
Assim, o facto de as escolas de menos de 21 alunos terem insucesso (que o terão, algumas) não resulta do tamanho mas de outras condições: origem social e territorial dos alunos, por exemplo. As escolas mais pequenas estão situadas nas zonas mais pobres do país, o que talvez explique o seu insucesso. A contrario a concentração de alunos produziria sucesso. Mas há estudos que o provem? Os mesmos alunos, com as mesmas condições sociais mas, concentrados nas vilas e aldeias em que se fazem centros escolares têm melhorado os seus resultados? Não há dados.
A medida não tem portanto grande coisa a ver com sucesso escolar ou falta dele mas com custos e com uma concepção centralista e concentracionária dos serviços públicos que a pressão orçamental do desgoverno dos últimos anos fez ressaltar mais agora. Pagarão as crianças que passam a fazer 80 ou mais km de autocarro diário …..
A fusão e o pastel
Mas verdade é que a resolução do Conselho de Ministros que cria este problema fala de mais algumas coisas:
- Que os agrupamentos verticais passarão a incluir como sede as escolas secundárias;
- Que os agrupamentos verticais existentes se fundirão até, na prática, haver 1 único nos concelhos mais pequenos e poucos nos maiores;
- Até já houve quem viesse dizer que o objectivo era fundir todos os agrupamentos com menos de 1000 alunos;
Antes de alinhar umas ideias sobre isto convém fazer uma explicação e uma declaração de interesses.
A explicação é, para os que não estiverem na área do ensino, o que é isso de um agrupamento de escolas: com o objectivo de integração de ciclos de ensino, e para evitar o isolamento das escolas do 1º ciclo e jardins-de-infância, foi criada uma figura administrativa com esse nome e que resulta numa unidade de administração educativa. Antigamente as escolas do 1º ciclo eram governadas através das máquinas das delegações escolares (por concelho) subordinadas às direcções escolares (por distrito). Hoje as escolas todas formam um conjunto (o agrupamento) que inclui os alunos e docentes do pré-escolar ao 9º ano (em muitos casos já até ao 12º ano). Esse agrupamento, teoricamente dotado de autonomia, é financiado pelo Orçamento de Estado, pelo Orçamento Municipal e por outras receitas e é gerido por órgãos próprios eleitos (directamente o Conselho Geral, indirectamente pelo CG o Director). O Director nomeia os coordenadores das escolas que fazem parte do agrupamento e outros cargos internos. Assim, por exemplo, o “director” da escola “primária” do seu filho não é director de coisa nenhuma mas sim coordenador dentro de uma unidade maior (supostamente autónoma, palavra de significado equívoco cujas torções políticas de sentido não vale a pena agora escalpelizar). Assim, o poder no agrupamento, e como se organiza e gera, é o poder na escola.
A declaração de interesses é que sou Director de um agrupamento de Escolas. Razoavelmente experiente (3 anos de funções completos com 5 anos de experiência administrativa anterior), 14 anos de professor, 3 pós-graduações em gestão pública, administração escolar e administração pública. Quem quiser verificar o currículo pode ir a linkedin : http://pt.linkedin.com/in/luissottomaiorbraga. Lá dirão alguns: está a armar ….
Na verdade, não; quando um médico dá uma opinião sobre a dor na coluna vertebral gostamos de saber se e é um clínico geral ou se tem mais capacidade específica. Não serei dos melhores directores de escola do país mas sempre poderei dizer alguma coisa com conhecimento de causa sobre o que é gerir uma escola.
Assim, vá para onde for, na minha posição há-de haver quem diga que sou contra a fusão, porque tenho medo de ser fundido, ou, se fosse a favor, porque andava ao tacho de um super-mega-ultra agrupamento. Quem me conhecer sabe que, nem uma coisa, nem outra.
Mas faço a prevenção …. na previsão dos comentários.
Sou director e ganho menos do que ganharia não sendo e notoriedade já tive demais. Agora acho que é direito de um homem livre, que se deleita com a memória de ter trabalhado com um dos constituintes que anos antes fez a constituição livre que, agora, tantos querem de novo desvirtuar, com a mesma liberdade de dizer disparates que cobre as palavras do Senhor Primeiro Ministro, e que é o limite último da liberdade de expressão, dizer que é criminoso o movimento de fusão de agrupamentos. E pode explicar-se porquê. Há uns anos, no século XIX a fusão entre dois partidos políticos que existiam no regime monárquico foi gozada por alguém, dizendo que o resultado ía ser um pastel. As fusões de agrupamentos vão dar pastéis estragados.
Porque a medida nem chega a ser economicista já que, como diz o povo, poupa farelo mas estraga farinha ….. Poderá parecer que se vai poupar no custo da gestão dos agrupamentos (que custa uns 20 a 25 mil euros ano para 4 ou 5 pessoas) mas vai-se gastar em transportes, custos da própria fusão (imaginem só em papel timbrado, fricções de funcionamento por via da tentativa de fundir comunidades educativas que não o são nem serão e outros problemas organizativos) ou, por exemplo, muito mais em comunicações.
Porque a medida é puramente controleira e visa reduzir a autonomia das comunidades educativas (já reduzida e vestigial). Imaginem o que será uma reunião de preparação de ano com 250 docentes…. Ou os bloqueios de funcionamento de escolas, habituadas a serem autónomas e que, para arranjarem um vidro ou comprarem um móvel, vão passar a ter de perguntar ao Senhor Director cujo rosto só se vê no dia da visita à paróquia (se essa visita chegar a existir).
Se há problemas de integração no dia-a-dia em agrupamentos de 1000 imaginem o que será em agrupamentos de 3000 e com 17 ou 18 escolas, algumas da dimensão da sede. Uma bagunçada que se prepara, potencialmente árdua de governar…. Alguns dos nossos políticos deviam aprender a navegar e perceber que as organizações não são como automóveis mas muito mais como navios: um superpetroleiro pesado demora entre 2 a 4 km entre o momento em que começa a virar de rumo e o que assume o novo rumo…
Porque a medida é anti-democrática porque visa diluir as comunidades educativas em superestruturas que de comunitário pouco poderão ter (imaginem o que será um departamento de ciências de um agrupamento com 100 pessoas….). Se hoje a reunite das escolas é uma doença crónica, com esta medida, vai ser uma doença súbita …..
E ainda, porque a medida é anti-gestionária e contra a corrente do jogo. Todos os que gerem o que quer que seja sabem que economia de escala não pode significar escala tão grande que crie tal impossibilidade de intervenção que signifique impossibilidade de processos e resultados de gestão. O caso vai ainda contra estudos e tendências que, nos países que tantas vezes nos impõem como modelos (liberais ou outros), começam a solidificar-se: vejam-se a este propósito os trabalhos publicados com financiamento da “nossa” fundação Calouste Gulbenkian sobre escolas com escala humana (http://www.hse.org.uk/). A frase inicial foi retirada daí.
E por isso se pode dizer que, se não chegar a ser criminosa, a medida será simplesmente ignorante, bem imbuída do espírito do tempo, que leva a que muita gente hoje fale de escola apenas com a autoridade de, em tempos já recuados, na infância e juventude ter andado numa. E conhecer a administração educativa é um conceito diferente de conhecer a escola….
Mas será que alguém me permitiria discutir o modelo de organização de um bloco operatório só com o argumento de que já fui operado ….. ?