Directores de escola: dirigidos, dirigíveis ou digeridos?
O grande problema da gestão escolar portuguesa, colocado de forma provocatória e assumidamente exagerada, é não haver gestão. Com isto não quero dizer que eu e os milhares de outros que se dedicam à gestão escolar nos seus agrupamentos e escolas somos uns inúteis que não sabemos o que fazemos ou que não trabalhamos. Até sabemos e fazemos bastante. Não nos deixam realmente mostrá-lo até ao limite e limitam-nos todos os dias, enterrando-nos em toneladas de papel e ordens impostas, anti-pragmáticas e imbuídas de centralismo e irrealismo, este e todos os governos de que há memória. Depois ainda nos ofendem sugerindo até num despacho que o problema das reuniões a mais é culpa nossa e “ordenando-nos” que o resolvamos… Temos de dirigir mas acabamos dirigíveis e afogados na bagunçada de papéis de digestão difícil.
E por muito que custe a aceitar a alguns, esse problema começa naquilo a que chamo o complexo representativo-ministerial, isto é, os membros da nossa sociedade que capturaram a representação dos pais e encarregados de educação e professores e os que, ao longo do tempo, fruto da nossa frágil participação política, vão alternando no ministério e seus múltiplos departamentos.
Os representantes notórios dos pais e encarregados de educação elogiarão a parte do último parágrafo em que pareço criticar os sindicatos de professores e os dos sindicalistas notórios a parte em que pareço virar o arremesso aos pais e encarregados de educação. A crítica ao Ministério será lida com mais benevolência mas, às tantas, a justa e verdadeira dimensão do seu alcance não será medida por todos. Por exemplo, nunca defenderia a extinção do ministério nem sequer dos organismos intermédios. Como na medicina, as amputações não podem ser a regra das reformas administrativas.
O sentimento inquieto dos que não são ouvidos
Podia filosofar dias inteiros sobre de quem são as culpas e que grandes soluções aplicar aos problemas das escolas que são a minha casa há 17 anos (em 38 de vida, são os que levo de profissão, e mais poderia invocar, sendo filho e de família de professores e tendo crescido em escolas, a estudar ou a esperar, e já aos 6 anos de idade frequentador de reuniões de professores, como muitos outros filhos de docentes num tempo sem ATL ou AEC).
Parafraseando Almada Negreiros: os grandes problemas e grandes soluções para salvar a escola já estão todos ditos e escritos, falta salvá-la.
Como sou um prático, sem currículo universitário ou de investigação, o que digo é normalmente desvalorizado em sessões e conferências. Creio que esse sentimento é partilhado por muitos colegas de função e profissão, dirigentes escolares e professores. Alguns já se cansaram de falar e também de ouvir alguma gente que nunca fez ou decidiu um processo disciplinar a um aluno ou escreveu um projecto educativo teorizar sobre como fazer tais objectos esquecendo tudo o resto que há a fazer ao mesmo tempo e que prejudica o tempo para esses processos.
Como não somos ex-ministros, o que dizemos tem pouco valor de troca, comparável ao ponto de vista do soldado da trincheira com o do general (o qual, muitas vezes, da trincheira conhece as histórias que os que dela vêm lhe contam ou que, se nela esteve, foi há tantos anos que já pouco sabe da luta e não vê como esta mudou).
Já fiz várias tentativas para transformar a inquietude individual numa reflexão (e acção) colectiva. Algumas até nem foram tão mal sucedidas como isso. Às vezes, o cansaço de se sentir a falta de representação dos nossos pontos de vista dá vontade de mudar de profissão mas a tradição familiar pesa e uma conversa com uma tia de 95 anos, e mais de 40 a leccionar, faz-me reconsiderar e ver que o sentimento que tenho é de longa duração e antigo.
Persisto, e creio que tenho esse dever, tendo tido oportunidades na vida que a maioria dos portugueses não têm e beneficiando de condições para exercer a minha liberdade que a maioria não pode almejar (nomeadamente, condições para ser independente e não recear ser perseguido ou prejudicado pelas ideias, isto é, ser livre). Num país em que até o 1º Ministro da Educação (na altura, finais do século XIX, Ministro da Instrução), D. António da Costa sofreu um processo disciplinar, por causa de ser incómodo, as cautelas de alguns talvez se entendam.
Foi uma felicidade ter nascido em Viana, terra belíssima e que traz serenidade. Muitas vezes o que eu digo é afastado e digerido como ideias de um parolo de Viana, com um estilo truculento e provocador. Às tantas, gosto disso como reacção e vivo feliz assim. E, por isso, insisto. Aqui ficam ideias de mudança para a gestão escolar que se fossem encaradas seriam a devolução à gestão escolar efectiva no sentido que Peter Drucker dava ao termo gerir. Isto é, aquela função em que o gestor mobiliza autonomamente recursos e motiva pessoas que organiza e empenha em processos para produzir e influenciar resultados que avalia e cuja continuidade planeia.
Quem não sabe, pergunta….
Como sei pouco, e pouco poderia afirmar, uso um recurso retórico que Camões levou à perfeição na estância 97 do canto IV dos Lusíadas: perguntar.
Não incluo perguntas sobre o estatuto pessoal e remuneratório dos directores, porque isso seria desfocar a discussão, mas sempre direi que me questiono porque fomos nós directores honrados com um normativo específico para nos reduzir os salários. Em greve estive, em parte por causa da falta de resposta às perguntas seguintes e, afinal, porque trabalho em média mais de 10 horas por dia (6 ou 7 dias por semana) e recebo líquidos, antes do corte, 1640 euros para um trabalho ao nível funcional de Director de Departamento (municipal ou da administração central): 6 escolas, 1085 alunos, 1000 adultos num CNO (que não são contados como alunos), 160 professores e 77 outros trabalhadores. O cansaço aperta e a tristeza aguça-se. Mas escolhi fazer isto e persisto. Ficam as perguntas:
1. O que é um tempo lectivo, definido precisamente e sem dúvidas? Isto é, como conceber um sistema centrado em aulas que não definiu legalmente o que isso é?
2. Existe alguma definição legal que permita distingui-lo de forma cartesiana de outras componentes do horário docente?
3. Como reduzir as centenas e centenas de páginas de normativos sobre os horários docentes e de turmas para critérios simples e que não conflituem entre si?
4. Quando vai parar a tentação de meter todas as funções, além da leccionação, nos limitados tempos não-lectivos dos docentes (onde já não cabem, sem escolhas que excluam coisas importantes)?
5. Quando haverá um sistema simples de contabilização e distribuição de horas docentes e não a montanha de papel que nos inunda?
6. Para quando normativos que tenham as definições claras e distintas no princípio do texto do articulado e não várias versões conceptuais da mesma nomenclatura, ao longo do texto, o que confunde, cansa e origina redundantes circulares e faq’s ainda mais cansativas?
7. Isto é, quando chega a simplicidade normativa e legislativa ao nosso Ministério?
8. Para quando as escolas e agrupamentos, agora chamados de unidades de gestão, terão efectiva unidade de gestão e não um sistema em que Municípios, Juntas de freguesia, Direcções Regionais, Direcções Gerais e Ministério (e até associações e parceiros privados impostos ou voluntários) se intersectam em competências dentro da escola e limitam a acção local autónoma dos órgãos da escola?
9. Quando passarão as actividades de enriquecimento curricular a ser efectivamente geridas pelas escolas e os seus docentes deixarão de ser “técnicos” contratados de forma precária?
10. Quando poderão as escolas determinar realmente o tipo de apoios educativos que prestam e quanto gastam neles sem fórmulas de cálculo exóticas e torcidas de explicar e sem planos, de redacção inútil, custosa e redundante?
11. Quando poderão fazer o mesmo para a gestão e para diversificar currículos?
12. Quando teremos um orçamento central indicativo e um orçamento unificado local de cada escola/agrupamento, autónomo e que permita definir linhas de acção e prioridades?
13. Quando teremos um limite de despesa por decisão autónoma superior a 5000 euros?
14. Quando será que um dos poucos corpos de gestores públicos em que se entra por eleição e após ponderação do currículo (com requisitos mínimos gerais de experiência e formação) será tratado com respeito e ouvido como um corpo de especialistas?
15. Quando terminará a suspeição sobre as escolas e seus docentes, que faz com que a acção disciplinar sobre alunos seja quase judicializada e as penas sejam absurdas de ineficazes (suspender alunos que já recusam a escola) ou simplesmente impossíveis de aplicar pela formalização?
16. Quando se olhará o problema da avaliação de desempenho com um olhar interior à escola e sem simbolismos de cruzada e proselitismos pseudo-moralistas acerca do mérito por parte dos governos?
17. Como olhar a diversidade das escolas de forma sistemática e não casuística, reforçando por sistema as que precisam de ser ajudadas?
18. Como descentralizar a estratégia para que sejam as escolas a defini-la e não simplesmente definir estratégias e metas nacionais traçadas a régua e esquadro?
19. Para quando a regionalização da educação, com base na observação de que certas partes da Educação são grandes demais para os municípios e outras pequenas de mais para um Ministério central?
20. Para quando regulação efectiva das Associações de Pais e da sua vida interna e actos eleitorais, para reforçar a sua força e representatividade e terminar a captura?
21. Para quando critérios objectivos e generalizados de atribuição de técnicos como psicólogos e assistentes sociais?
22. Para quando colocar as aplicações informáticas do ministério ao serviço dos utentes nas escolas, ouvindo-os sobre as mudanças e formas de construção e consolidando-as, não as fazendo mudar quase todos os dias?
23. Para quando uniformizar regras de concursos locais de docentes, evitando uma diversidade de critérios surreal e valorizando assim pela justiça o trabalho dos docentes contratados?
24. Para quando consagrar estatuto e formação dos técnicos e auxiliares não docentes?
25. Para quando e como fazer a distinção normativa clara entre indisciplina e pequena (e grande) delinquência juvenil?
26. Para quando e como dar força às escolas para que as parcerias com o exterior as tenham como nexo e não sejam assimétricas (tantas vezes esquecendo que são o único serviço público onde os cidadãos são “embebidos”, isto é, em cujo interior vivem e não simplesmente procuram em certos momentos)?
27. Para quando e como fazer com que segurança social e outros serviços se empenhem em ajudar as escolas e não lhes sejam indiferentes, desvalorizando-as, na prática, com atitudes subalternizantes?
28. Como reforçar a democracia interna das escolas no sentido da participação efectiva, criando travões à captura de representação (em todos os corpos) ou ao indiferentismo?
29. Como avaliar as escolas sem as limitar e olhando como válidas opções derivadas das realidades locais diversas?
30. Quando serão os directores das escolas efectivamente ouvidos para criar e propor as normas que aplicam e não simplesmente consultados in extremis, na entrada em vigor, sobre normas que outros criam ex cathedra?
A pergunta final: Quando teremos nas escolas verdadeira autonomia (que é sinónimo de efectiva gestão), isto é, a capacidade de fazer uma parte significativa das próprias regras (e não quilométricos e instáveis regulamentos internos onde a falta de referência a uma alínea de um despacho pode implicar ordem de revisão)?
Luís Sottomaior Braga (professor de História do Ensino Básico, Director de um Agrupamento de escolas desde 2007)