Ao parapeito da trincheira educativa - conselhos de soldado aos generais da educação
Ao parapeito da trincheira educativa
John Keegan um grande historiador militar britânico mudou a perspectiva da história militar fazendo, ao lado da história das batalhas e das grandes movimentações militares, a história dos soldados. Na abordagem da 1ª guerra mundial, por exemplo, isso significa que o historiador não pode resumir a guerra à Batalha do Somme ou Verdun mas pensar que, do ponto de vista do soldado, é como se essas batalhas quase não existissem e o dia-a-dia da trincheira fosse mais vivido que o quadro geral da guerra.
Assim, em vez dos avanços e recuos de divisões e exércitos, que os generais viam e passaram à história, o soldado, enterrado na lama e encostado ao parapeito na trincheira, via nesses dias de batalha apenas mais barulho, mais fumaça e das vitórias generalícias lembrava os camaradas mortos nas escaramuças por conta de mais uns metros inúteis.
Já recorri várias vezes a esta imagem para caracterizar a situação do nosso sistema de ensino nos últimos 4 anos e meio. E a metáfora da guerra e da trincheira tem algumas fortes componentes de paralelismo, passe o exagero. Até tem generais de quem os soldados desconfiam porque se desconsideram uns aos outros. E gente entrincheirada não tem faltado também.
Na primeira guerra mundial os generais desconfiavam da coragem dos soldados, na guerra educativa dizem que soldados e capitães são malandros e não querem trabalhar. Enterrados na lama social os soldados são acusados de só quererem privilégios e não fazerem sacrifícios para além de não quererem ganhar a guerra. Curiosamente quando os mandam avançar para investidas como a escola a tempo inteiro, o plano tecnológico, o plano da matemática, o plano de leitura, a avaliação ou as substituições, até vão. Com o exército em movimento descobre-se a má preparação das surtidas que se dizia serem a investida final contra o insucesso.
Os soldados levam com as culpas. E quando há prémios, como para quem atinge os resultados fantasiosos de quantidades de validação em Centros Novas oportunidades, esses vão para o estado-maior e não para quem os produz (que se deve dar por feliz por continuar a ter trincheira, isto é, emprego).
Conselhos aos generais
A imagem dos professores como poilus das trincheiras das Flandres é capaz de só ser sugestiva para mim que ainda acredito em coisas retrógradas como a frase de Vitor Hugo de que abrir uma escola é fechar uma cadeia ou acho que estamos a travar uma batalha contra a ignorância e o subdesenvolvimento de base educativa. E estamos a perder…
Contudo, soldado graduado em capitão, numa unidade de província, estou ensanduichado como gestor de escolas entre um estado-maior lisboeta que vê sem perceber milhares iguais, um comando regional não legitimado politicamente em eleições, feito de burocratas nomeados e pouco ou nada tarimbados na trincheira (tarda a regionalização), e os soldados que nos vêem como executores da política do comando que não encaixa no seu dia-a-dia.
Felizmente, mesmo que os generais não venham à trincheira (e, perdoem-me a imagem, mas também na 1ª guerra houve generais vaiados em tentativas de lá ir), o facto de isto ser uma guerra abstracta permite que eu possa sugerir aos generais ideias para que a trincheira corra melhor. Para aqueles que as criticarem não precisam de gastar muita energia. Basta lembrar que não percebo nada disto, soldado de linha que sou, talvez muito preocupado com as incidências tácticas do dia-a-dia, deliberadamente ignorante das largas visões estratégicas que têm marcado a cavalgada para a vitória do sucesso educativo que os 4 anos passados anunciam.
Na 1ª guerra cada general também achava que a sua ofensiva ía ser a decisiva. Para quem quiser avançar no paralelismo sempre pode ver que quem ganhou a guerra não foram as estratégias de general mas a táctica associada aos tanques. Mas isso são histórias da História (e até há generais que querem reduzir o espaço dessa disciplina no currículo, talvez por dar espaço a ideias disparatadas destas). Por isso aqui vão.
12 ideias de soldado para os generais do ministério da educação.
1. Tratar bem os soldados. Não mentir sobre eles e sobre a sua efectiva condição. Não usar do poder repressivo ou gerir com base no medo e na criação junto do povo da ideia de que são dignos de inveja. Aceitar que é verdade quando dizem que a trincheira tem lama e que levam com balas. Não juntar balas de estado-maior às que já chegam por via dos problemas que enfrentam no combate diário. Pagar o soldo devido aos soldados (por exemplo, se a escola a tempo inteiro é um combate tão importante porque são os seus docentes precários e mal pagos? Todas as crianças aprendem inglês ensinadas por professores pagos abaixo da tabela…)
2. Afrouxar a campanha mediática a cantar vitórias que não existem. Os soldados sabem que a trincheira não avançou como se diz e que até recuou. Isso reforça a dificuldade de os mobilizar.
3. Primeiro dever do general: ir à trincheira. Não para a parada ou dia festivo mas para ver combates não encenados. Falar com os soldados e tolerar que a sua visão táctica pode ajudar a estratégia. Afinal não são inimigos.
4. Fornecer bom material de combate. Não artilharia vistosa mas de fogo-fátuo como o Magalhães mas armas bem testadas mesmo se mais feias. Aceitar que há instrumentos que podem não estar na moda mas continuam eficazes: por exemplo, as bibliotecas, uma disciplina consistente, um sistema de faltas efectivo e a velha apetência humana para a relação entre professor e aluno que só surge onde há regras, respeito e motivação.
5. Fazer a guerra contra a ignorância pela aprendizagem e não pela papelada. A 1ª guerra também teve muitos generais de papeletas e, se alguns da trincheira se deixam enlevar pela papelada, isso é muitas vezes uma forma de agradar aos chefes e fugir ao combate. 75% dos papéis e da nova moda das aplicações informáticas são prescindíveis e servem só para alimentar a existência de Estado-maior. Que sentido faz todas as escolas terem de preencher uma aplicação a dizer que começaram o ano lectivo na data certa? Não seria melhor perguntar só a quem não começou?
6. Confiar que quem está na trincheira está bem treinado e sabe lutar. Confiar que autonomamente conhecem melhor o seu sector da trincheira que o burocrata do centro que nunca lá foi. E mais vale contar com isso e aturar-lhe as manias de autonomia que ter a sua acção no bloqueio por via burocrática do que lhes é imposto contra natura.
7. Aceitar que nesta batalha há uma variável território: o que vale para os sectores urbanos não vale para o interior do país, o que vale em zonas mais ricas não vale em zonas degradadas ou mais pobres. Que a configuração do combate é diferente e não pode cair-se na tentação de uniformizar. Na escola a tempo inteiro e na rede escolar Lisboa e Porto são por exemplo muito diferentes de Paredes de Coura ou Carrazeda de Ansiães. Municipalizar ou privatizar querem dizer coisas muito diferentes nesses sítios diferentes.
8. Essa diversidade também não pode fazer cair na atomização e na falta de unidade de comando. A descentralização não quer dizer municipalização e isso é algo que os generais, preocupados com custos mais do que com gestão não entendem, mergulhados no falacioso dogma municipalista que é matriz do pós-25 de Abril.
9. E por falar em custos: a guerra contra a deseducação é uma guerra cara e de material. 1% do PIB da Noruega ou da Finlândia é mais dinheiro que 1% do nosso. Por isso se gastarmos mais meio % para começarmos a ficar menos atrasados como eles, onde está o problema? Comparações com percentagens do PIB fazem mais sentido nos gastos militares onde as nossas ameaças são pequenas. Na educação, às tantas, vale mais olhar ao gasto por aluno ou ao custo final de um diplomado que a medidas de comparação que não olham à efectiva riqueza do país. A ignorância é mais cara.
10. Finalmente convém que os generais pensem que se houver motim isso não se resolve ignorando-o mas negociando as causas dele. Mesmo numa guerra há que respeitar os direitos fundamentais (dos sindicatos, à greve, à liberdade de expressão).
11. E para isso há que também não ser dogmático. Na selecção de professores, por exemplo, quer-se impor o dogma da escolha pela escola porque os generais de hoje são contra o que chamam o outro dogma da escolha (pelo perfil) condensada numa lista graduada. A escolha de escola evita o problema político do concurso nacional mas é mentira que agora só assim se escolha pelo perfil: a “oferta de escola” como modelo de escolha vai desregular a profissão e havemos de em pouco tempo chegar à fase em que qualquer um ensina qualquer coisa. Para quem tinha como ponto curricular central a especialização em sociologia das profissões é curioso que a actual comandante e suas ordenanças saiam a dizer que querem destruir a matriz de perfil profissional central dos professores (a graduação profissional) por troca com bizantinices como entrevistas profissionais ou selecções proletarizantes a olhómetro.
12. Conselho final sobre a avaliação dos soldados, dos pelotões e das companhias, tirado de notável professor da Universidade do Minho: não é por pesar o porco que o porco engorda….
Com estas ideias na mente, reflectidas de forma mais séria que o que é permitido em 1500 palavras e descendo ao concreto, talvez se evitem tantas deserções como as que houve nos últimos anos. E talvez, em vez de se falar de pronunciamentos de 150 mil nas ruas, se fale em sucesso verdadeiro e num sistema educativo realmente mobilizado e eficaz.
E afinal, para os generais vale sempre a observação que, se não ficam para sempre no posto, sempre podem ficar na memória dos soldados. Por bem há-de ser melhor do que por mal….
Luís Sottomaior Braga
Professor de História do 2º ciclo do Ensino Básico
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