Um herói falso a escrever sobre a injustiça. Professores portugueses: Heróis, não! Injustiçados.
“Se a justiça é matéria relevante para os indivíduos, enquanto cidadãos de um país, membros de uma sociedade, elementos de uma família, comunidade ou grupo de amigos, não pode deixar de sê-lo no seio das organizações. A lógica de mercado e competitiva não pode descurar as percepções de justiça dos membros organizacionais, sob pena de serem as próprias organizações a verem o seu desempenho seriamente afectado”
Esta citação é de um livro que foi indispensável na formação que tive para a gestão. O autor é uma referência do ensino e investigação em gestão em Portugal: Arménio Rego. Um vianense ilustre e de quem tive a honra de ser aluno na Universidade de Aveiro. Os professores marcam e não se esquece a intensa focagem que os docentes aí faziam sobre a justiça como princípio orientador da gestão ou a necessidade de ética na gestão com que o Professor José Manuel Moreira nos espicaçava magistralmente.
Acho que a leitura deste Justiça e comportamentos de cidadania nas organizações, e outras obras desse autor, seria de muita utilidade para muitos gestores escolares e para os que se situam no nível regional e nacional de gestão do sistema de ensino. Humildemente confesso que foram fundamentais para mim.
Dentro das escolas, muitos se sentem hoje injustiçados: os assistentes operacionais mal pagos, que não progridem, os docentes contratados nos concursos, os pais e as suas expectativas, os alunos mais velhos e as angústias face ao trabalho, os professores face às progressões e às circulares e leis conexas. Injustiças reais ou percepcionadas, mesmo que algumas sejam silenciosas (o que, aliás, é a pior forma de ocorrerem, pois rebentam com violência mais à frente).
Por falar disso, e do sentimento de ofensa face à provocação final aos injustiçados (que é, nem se reconhecer que ela existe e existiu), é que este texto soará emocional. Talvez em demasiada, mas as emoções são assim, exageradas e prementes.
A distinção subtil entre a injustiça e a heroicidade
Fazer a justiça não passa pelo exagero insensato que esta semana se ouviu a propósito do PISA. José Sócrates, com aquele estilo “marketeiro” que o fez chegar onde está, coroou as suas intervenções, na borbulha retórica que se criou sobre os números do PISA, com a frase lapidar de que os professores portugueses são heróis.
Aqui no Norte, quando se diz a alguém “És cá um herói!” isso tem segundo sentido e significa que se tem uma atitude um pouco malandreca. Mas não foi esse sentido (que seria razoavelmente coerente com intervenções anteriores) que o Senhor Primeiro-ministro quis dar à exclamação. O que me magoa e a outros é que quis mesmo que acreditemos, que depois dos resultados do PISA, que tanto festejou, agora nos acha heróis (e nunca nos achou outra coisa). Espero que não seja só eu a ter memória.
Alguns da oposição, com não menos retórica oca, vieram dizer que sim, por esta concordavam. Outros na mesma linha, que faz caminho na política portuguesa, até disseram: “pois, pois, heróis até por aguentarem com as políticas do governo!”. Ideia que até é gira no efeito discursivo mas que é apenas política conjuntural.
Será que os professores portugueses querem ser heróis, ou tão só sentirmo-nos tratados com justiça? A um herói não se paga salários em termos (porque o heroísmo não se paga) e se o esforço for sobre-humano não há que queixar, porque um herói não se queixa. Morre na luta, metafórica ou até efectivamente. O herói não tem estatuto ou direitos, porque é excepcional e sacrifica a família e outros valores, em nome das virtudes heróicas. A um herói não basta ser profissional, tem de ser transcendental. E fazendo agora um bocadinho de exagero retórico, também se poderá dizer, que se somos heróis, não são precisas quotas porque seremos todos muito bons ou excelentes….O herói está mais perto do santo do que do humano.
Nem missionários, nem mercenários
Uma amiga minha, que prezo como referência, falou-me, há tempos, com muita graça, de um lema para os professores: “nem missionários, nem mercenários”.
Revejo-me nisto e, por isso, o meu comentário para a frase do PM, exagerada e que quase ofende, é que não queremos ser heróis, queremos ser e ser tratados como professores normais e profissionais. Num sistema com 150 mil profissionais, a coisa não vai com heroísmos e voluntarismos, vai, em tempo de paz, com justiça e visão estratégica.
Por isso, por minha parte, recuso o estatuto que o exagero retórico nos atribuiu e creio que, em conjunto, o devemos, todos, professores portugueses, recusar.
Se Sócrates tivesse dito, com mais enfoque, que somos essencialmente bons profissionais, empenhados, em vez do atordoante grau de heróis…!
Só que isso custava-lhe e “heróis” tem mais penacho…. E, aliás, sempre guardou para si os louros de autor da ideologia que guia estes heróis (as políticas do Governo). E é neste nível de mendicidade intelectual que está a política portuguesa. Uma conclusão que gente de mais qualidade que a minha também verbaliza, como se vê, por exemplo, no texto notável de Bagão Félix no Público de sábado. A crise chegou às fundações quando um fulano de esquerda canhota, como eu, se vê obrigado a pensar em assinar por baixo de um texto de alguém de direita, só porque é um homem sério e porque já estamos só a pensar na ética básica.
Por pudor e realismo, sempre recusaria o título de herói por fazer o meu trabalho e especialmente por andar atento ao verdadeiro heroísmo docente: as professoras que arriscam a vida nas escolas do Afeganistão por ensinarem raparigas, os professores do Zimbabué e no Irão que o regime persegue, os professores em África que dão aulas à chuva, com alunos sentados em latões e sem receberem salário, os professores detidos por ensinarem sobre direitos humanos ou sobre liberdade em países em que, se alguém critica o governo, vai preso. Não temos, nem queremos, heroísmos desses.
Já houve muitos professores portugueses heróis dessa estirpe mas que preferimos todos não voltar a ter: os que ensinavam em aldeias isoladas, sem luz ou água, a miúdos descalços e com fome ou que pagavam sapatos e roupas do seu bolso, para os miúdos não se sentirem deslocados no exame, entre “os da vila”, e poderem fazer valer os seus conhecimentos, não sendo puxados para baixo pela má aparência.
Ainda há lamentavelmente heroísmo desse, disperso, e necessidade dele, e desse espírito, mas isso não justifica a retórica vã de nos tentar fazer subir todos às virtudes heróicas, depois de nos fazerem passar sem distinção pelo achincalhamento de preguiçosos, oportunistas e exploradores do interesse público. Coisas que nunca se disseram com tanta clareza, como se diz o heroísmo agora, mas que todos percebemos que andava pelos discursos.
Como tenho memória, repugna-me este tipo de marketing imediatista que lança nevoeiro sobre o que devemos querer ter: justiça como profissionais.
E para os que quiserem conhecer professores heróis deixo 2 exemplos que fazem desfalecer a baronia que oportunamente nos querem dar. Um do passado, que serve para a memória e ajuda a iluminar o PISA do país em que aconteceu. Outro do presente, e em que os professores e os outros, que aguentem a modorra de ler isto tudo, podem partilhar do heroísmo, ajudando e actuando.
Verdadeiros professores heróis
O 1º exemplo tocou-me há 6 meses. Num projecto Comenius, uma das visitas foi ao monumento à TON no centro de Varsóvia. A sigla significa em Polaco Tajna Organizacja Nauczycielska o que quer dizer Organização Secreta de Professores ou de Ensino. Se preferirem traduzir de outra forma, o Ministério da Educação clandestino durante a ocupação alemã.
Para os que falam da importância da força da sociedade civil na educação, esta história é um grande exemplo. A organização foi criada durante a ocupação da Polónia por um professor chamado Czesław Wycech (ora aí está um herói….) e visava garantir a sobrevivência da cultura e língua polacas que os alemães proibiram. Clandestinamente, e em permanente fuga ao exército alemão, Gestapo e SS, criou uma rede de escolas. 3 anos após a ocupação, em 1942, cerca de 1.500.000 estudantes estavam em escolas primárias clandestinas e, em 1944, havia 100.000 pessoas a estudar em liceus clandestinos. 1 em cada 3 crianças polacas foi escolarizada assim nesse período. Um dos estudantes foi, por exemplo, o Papa João Paulo II. Boa parte dos professores foi pelo menos detida e torturada e 15% dos professores polacos, isto é, cerca de 8.000, foram fuzilados por conta disso. Heróis, portanto …..
A memória persiste nas escolas que têm nomes de alguns deles, monumentos e, muitas vezes, exibem como relíquias os livros que foram escondidos no meio das paredes para não serem destruídos pelo ocupante. Nesse país, os professores são socialmente considerados e também pela memória de serem actores fundamentais na resistência e libertação da ocupação. A Polónia é o 5º país na lista do PISA mas o primeiro-ministro não precisa de chamar heróis aos professores no Parlamento porque também ninguém tem coragem, mesmo ganhando pouco, de os degradar ou ofender ao ponto a que se chegou em Portugal. Para isso existe a memória….
Se acharem que isto é muito distante e exagerado e quiserem um herói docente actual sugiro uma consulta ao site de qualquer organização de direitos humanos global (a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch). Há vários. Para um exemplo concreto deixo o link para o site desta última (http://www.hrw.org/en/news/2010/08/04/banned-censored-harassed-and-jailed) onde aparece o nome da professora Vu Van Hung (do Vietnam) que, pela sua participação em actividades pacíficas em defesa da Democracia foi despedida da docência. Em Abril de 2008, foi presa e severamente sovada por participar numa manifestação pacífica contra a China, aquando da passagem da tocha olímpica. Foi de novo presa em Setembro de 2008, desta vez por ter segurado uma faixa a pedir democracia multipartidária numa manifestação. Cumpre, por isso, uma pena de 3 anos de prisão, a que se seguirão 3 anos de prisão domiciliária. Pensa-se que estará detida na Prisão de Hoa Lo 2, em Hanói, onde sofre de problemas de saúde, em resultado de violentos espancamentos durante os interrogatórios e uma greve de fome de um mês. É considerada pela Amnistia Internacional prisioneira de consciência (um preso sem crime e, por isso, injustamente preso) e quem quiser ajudá-la pode escrever ao Governo Vietnamita a apelar pela sua libertação (documentos em várias línguas, em http://www.amnesty.org/en/library/info/ASA41/008/2009/en). Uma professora heróica, portanto.
Perante histórias destas, nós, professores portugueses, não somos heróis, somos só injustiçados e também por quem nos chama assim. Justiça é o que precisamos e não palavras bonitas, negadas pelos discursos do passado e de que ainda nos lembramos.
Pôr as coisas no seu devido lugar pode ser perguntar, como o autor da citação inicial, no prefácio do seu livro: “(…) Na economia do conhecimento em que progressivamente vivemos, a cooperação e empenhamento das pessoas são cruciais. (…) Alguém ousará negar que esta postura é menos provável quando as percepções de justiça são negativas?”
A nossa percepção de justiça como professores é negativa e não são só palavras, mesmo bonitinhas, que mudam isso.
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