vistodaprovincia

10.13.2014

Comentário a JCE sobre a BCE....

 (Carta de leitor para o Público por causa do comentário de J. Carlos Espada na edição de hoje sobre a questão da "colocação de professores" .... que podia servir também para o Presidente Cavaco .... que não fala do que deve, senão para dizer asneiras....)

Ex.ma Senhora Diretora do Público,

Leitor do jornal desde o primeiro dia, no tempo em que só havia papel e o jornal foi a mudança da imprensa portuguesa, começo por saudar o trabalho excelente que os profissionais que dirige têm feito na cobertura da bagunçada em que se tornou o início de ano.
Destaco em particular o facto de se informarem precisamente sobre as componentes técnicas do problema e tentarem explicar, a quem não esteja dentro delas, as complexidades de um processo que é realmente difícil de executar e mais ainda de explicar.
Ainda não perdi a esperança de ver uma carta de leitor publicada neste jornal sobre este assunto e aqui fica uma tentativa sobre um assunto em que, afinal, me parece posso ajudar os meus companheiros leitores com uma opinião com algum sentido (coisa que o cronista, J. Carlos Espada, homem erudito e culto, mas com pouco conhecimento da matéria, que hoje escreve no jornal sobre o tema, podia também ter procurado).

O signatário pode, com alguma precisão, auto-referenciar-se como conhecedor relativamente profundo do problema. E, por isso, aprecia muito que haja um jornal que, na linha do que deve ser a verdadeira promoção da cidadania, esteja a dar destaque ao problema, com a profundidade suficiente para, ao mesmo tempo, lhe dar a importância de interesse popular que merece e sem descurar a transmissão de conhecimento efectivo sobre as questões, não as simplificando ou reduzindo o tema apenas a um conflito entre contratação central (má, estatizante, soviética, como alguns opinadores já disseram) ou local (autónoma, libertadora, próxima do problema, desejável, segundo outros) ou a uma bizarria sindical contra o Ministério, bem intencionado (para alguns, mas claramente incompetente, para todos os que olhem com atenção).

Essa dicotomia em que o jornal, factual e isento, não caiu, é redutora e dogmática.

A contratação de professores é um problema técnico. Com grande impacto na vida dos cidadãos, com grande alcance social e político, até pela dimensão numérica dos envolvidos, mas técnico. Começa por sê-lo na própria terminologia.

Por exemplo, muitos (e o jornal, bem, não o tem feito) confundem colocação de professores com contratação de professores.

Os professores de quadro (trabalhadores já vinculados ao Estado) são distribuídos pelas escolas de 4 em 4 anos (se quiserem concorrer para mudar de lugar) e só uma percentagem miníma têm de ser colocada anualmente (os que perderam o lugar no ano anterior).

Por isso, e não é irrelevante afirmá-lo de forma precisa, para discutir realmente o “dogma da colocação autónoma pelas escolas”, o que estamos agora a discutir são os professores além quadro que o Estado tem de contratar, externamente aos já vinculados, e que tem de selecionar com o critério e a legalidade inerentes a um concurso público de acesso a funções públicas (que inclui pressupostos de igualdade, não discriminação, transparência e isenção).

Mas se são tantos os envolvidos que parece que o sistema de ensino bloqueia?!

Essa observação destaca logo o primeiro problema: talvez não precisassem de ser tantos, se o Estado cumprisse a sua obrigação e, em vez de contratar de ano a ano, décadas seguidas, os que precisa para vários anos seguidos, estabilizasse os quadros. Os teóricos que opinam em muito lado sobre isto, e hoje também no Público, e advogam sistemas dogmáticos, salvíficos porque descentralizados, para resolver o problema, esquecem esta questão prévia: se há concurso de contratação nesta escala “soviética” é porque o Estado não cumpre as suas obrigações e, apesar de folclóricas vinculações extraordinárias, não resolve o problema da precariedade de tantos docentes sujeitos a uma dança anual.

Resolvido esse problema, a escala anual do concurso reduzia-se ao que deveria ser, residual, assumida a colocação plurianual dos docentes de quadro. E simplificava-se tecnicamente.

Mas vinculado ao quadro o máximo possível de professores (e nesse outro concurso interno não há hoje problema nenhum, para lá de discussões técnicas pontuais e sem grande relevância noticiosa) sempre haverá necessidades pontuais de base anual (uma turma que surge, uma outra que fecha, um curso ou opção que abre, um professor que se reforma ou outro que morre, etc).

Como resolvê-las? Aí entra a discussão dogmática entre os centralistas e os localistas. O operador do processo deve ser o Estado ou as escolas dotadas da autonomia, mágica e dissolvente de dificuldades? (e nem falo da minha opinião pontual, também dogmática e que merecia também ser experimentada, de que a regionalização é que ía ser....) 

Como essa discussão é contaminada pela política, muitos fogem à sua real componente técnica (e como o vosso cronista João Carlos Espada hoje, chegam ao ponto de fazer textos a citar profusamente Tocqueville mas sem um único argumento realmente técnico que mostre conhecerem realmente o problema concreto).

Imaginem que citava Hipócrates ou Galeno para falar do Ébola: parecia erudito mas calculo que pouco credível na dimensão técnica do problema.

Pelo meio lá vem o inevitável adjetivo “soviético” ou “centralista” e não se foca o problema técnico. O que realmente funciona melhor para evitar a trapalhada presente? Aliás, nestas coisas tudo é teoricamente possível, desde que bem executado ,e quanto mais difícil, maiores as exigências técnicas e de planeamento (que é o que tem aqui falhado, no meio do dogmatismo do “acho isto e aquilo”).
Era possível fazer um sistema de seleção só centrado nas escolas mas a massa de concorrentes a todas as escolas faria com que se concluísse que, para suprir todas as exigências legais de um concurso, o sistema seria tão caro que talvez seja melhor simplificar e centralizar e gastar esse dinheiro consumido na operacionalização de milhares de concursos locais (não o fazendo, poupado) noutras coisas mais úteis (que tal vincular professores?).
Mas o dogma da autonomia cega os que deviam abrir melhor os olhos: assim entrou-se na aventura de tentar fazer concursos locais em nome do dogma da autonomia e sem reparar que só abrangem 0,8 % dos docentes (diz o Ministro, com o rigor a que nos vem habituando, que são realmente mais). Então 0,8% (ainda que sejam 5%... ) é que faz a grande mossa na diferenciação dos projetos educativos autónomos das escolas (outro mito popular)? Sejam 5%, isso é que vai fazer a diferença e a distinção?

E na discussão desse ponto as notícias, a que deram merecido destaque no jornal, sobre professores colocados pela Bolsa de Recrutamento em dezenas de escolas ao mesmo tempo são um facto sensível para o deslindar da questão.

Na verdade, isso não é um problema de execução do sistema legal da BCE mas sim um problema de conceção.A BCE como foi concebida tinha de dar esse resultado porque já os concursos de oferta de escola anteriores o produziam....

Para selecionar contratados para o sistema, que lecionarão em base anual, a lei prevê 3 processos:

1. ou se renovam contratações anteriores (situação que não teria problema nenhum se tivessem antes sido feitas com os critérios de exigência pública, que já referi acima, o que não é manifestamente o caso, já que antes já houve contratações de escola anuladas por ilegalidade dos critérios e não é este o primeiro ano em que o Provedor de Justiça se refere a isso);

2. ou se seleciona com base numa lista ordenada nacional, em que cada candidato concorre às escolas que quer e é ordenado por grupo de docência, com base num número que combina pontuação do seu tempo de serviço com a nota do curso que o habilita para ser professor. Esse número, que condensa a informação essencial, mínima e comparável uniformemente, do seu currículo, traduz uma avaliação curricular mínima e chama-se graduação profissional.
Usando uma linguagem de mercado, essa lista promove o encontro entre as vagas disponíveis e as escolhas dos candidatos: os candidatos escolhem todas as escolas, em que aceitam ser colocados e com base numa lista em que são ordenados com base em dados previamente verificados, e que depois de colocados já não é preciso verificar, são colocados numa única escola (que pode ser distante e não ser a primeira preferida mas sempre terá sido escolhida por si, mesmo no limite da escolha). É prático, rápido, certo e, se perde em diferenciação, ganha em eficiência e transparência. Nas listas todos controlam todos e as batotas são mlogo verificadas e pelos próprios candidatos....

3. Desde Maria de Lurdes Rodrigues foi inventada de forma atamancada uma terceira maneira,  baseada na ideia da suposta autonomia das escolas para escolher “de acordo com o seu projeto educativo” conhecida por “oferta de escola”. Esse sistema obrigava cada escola a abrir os seus próprios concursos para cada grupo em que necessitavam de docentes fora do quadro. Podiam definir mais critérios, além da avaliação curricular, traduzida já pela graduação profissional.
Como o liberal legislador deixou campo aberto a tudo sem critério, como disse no Público, há tempos, Santana Castilho, foi a "liberdade para disparatar". Mesmo os diretores que se moderassem na latitude de critérios, tinham um mês de Setembro/Outubro carregado de verificações, construção de listas, telefonemas a candidatos (porque os primeiros de cada grupo eram quase sempre os mesmos e só se chegava a escolher no lugar 30 ou mais abaixo (o tal fenómeno revelado agora das colocações múltiplas) e alunos sem aulas. Como a coisa corria antes um pouco melhor e estava disseminada não dava tantas notícias. Eu fiz centenas de concursos desses como diretor de um agrupamento TEIP. E usava como procedimento a graduação porque mesmo assim simplificava...

Muitos diretores, enlevados pelo "poderzinho" de escolher, definiram critérios sem consistência, não comprováveis, de difícil operação nas escolas com os meios que têm para verificar. O resultado foi uma trapalhada razoável que, em anos anteriores, deu origem a audições parlamentares, processos judiciais, recomendações críticas do Provedor de Justiça e muita polémica entre professores. Mas, como, mesmo com professores ilegalmente selecionados (que renovavam depois contratos assim obtidos), o sistema lá foi andando, aos tropeços, ninguém deu realmente por ela fora de círculos mais especializados ou interessados.

Mas o problema era grave e, vai daí, com a conivência de alguns sindicatos – que não a FENPROF e outros com ela alinhados -  (e tem de ser disto isto, porque o ministro o sugeriu manhosamente no parlamento ao dizer que a BCE foi “negociada” com os sindicatos), o Ministério decidiu mudar a lei e fazer a justaposição dos concursos locais de cada escola numa bolsa nacional e tentar evitar os problemas da "liberdade para disparatar nos critérios" e da atomização de concursos com milhares de candidatos cada um (perante o desemprego os candidatos concorrem a todas as escolas, o que me leva a dizer que quem defende o fim da “centralização”, entende pouco de “mercado” pois, em vez um “mercado” que faça o encontro entre candidatos e vagas de forma eficaz, defende um mercado disperso em que todos vão em igualdade a todas as vagas, em dispersão de concursos pelo país, o que é muito pouco prático e não tem solução, visto que ninguém pode ser proibido de concorrer a tudo o que quiser e tem de ter condições para tal).

Essa justaposição para resolver o problema foi a Bolsa de contratação de escola: mal concebida (preguiçosa e dogmaticamente concebida, diria mesmo) e pior executada. Na parte do concurso que é mesmo nacional (a Reserva de Recrutamento) os problemas são pontuais e são mesmo erros localizados de tipo informático. Os professores das escolas colocados por aí já estão a trabalhar, na generalidade.
Na BCE depois da fórmula errada, da revelação dos problemas originais de conceção entramos agora na fase de invenção em que já se vai fazer uma nova Bolsa para as escolas que deviam mas não entraram na primeira. Asneira por cima de asneira....

Do outro lado, qualquer pessoa com algum tino que tenha feito concursos de oferta de escola com algum rigor nos critérios (isto é, pelo menos evitando o critério que muitos diretores usaram de que "fica cá o que já esteve", o que ignora os que são melhores e não estiveram) no passado previa a desgraça de tentar justapo-los. Eu previ aqui http://www.vistodaprovincia.blogspot.pt/2014/03/bolsa-de-contratacao-mudar-o-nome-m.html. Como a coisa era provinciana, mesmo com a alguma divulgação, ninguém ligou ao parolo de Viana....ainda lei não estava feita.

E, por isso, digo: não vale a pena ir buscar Tocqueville para explicar soluções para isto. Basta uma competência mínima sobre um procedimento que se faz desde os anos 30 do século XX (antes em papel e agora informatizado) e que se baseia em convenções para funcionar (a graduação profissional é uma convenção justa e aceite de base matemática e que funciona bem e que em vez de ser deitada fora merecia ser estudada e até quem sabe aperfeiçoada, embora me pareça que dada a qualidade dos artistas, deviam deixar estar).

E para terminar destaco só esta ideia central: o que falhou não foi o concurso nacional "centralizado", o que falhou foram os concursos locais (isolados, nos anos anteriores, justapostos, este ano). Por incompetência e falta de estudo. E para quem tanto falava de rigor isso é uma constatação ridícula. E o ridículo mata ou neste caso produz zombies políticos....

Com os melhores cumprimentos,

Luís Sottomaior Braga

PS: o currículo do escriba não interessa nada porque acho que algumas conclusões sobre este tema se atingem, estudando-o a fundo, mesmo sem formação específica (mas estudando-o mesmo e não simplesmente opinando)  mas se decidirem publicar a carta sempre podem lá por que o autor é professor do Ensino Básico de História e Português, especializado em Gestão e Administração Escolar e em Gestão Pública e foi diretor de um agrupamento TEIP (Darque) 6 anos. Concluiu ainda o CADAP (curso de Alta Direção em Administração Pública) no INA. Mas como os argumentos não são de autoridade podem só dizer que é professor do Ensino Básico e concorreu 21 anos em concursos docentes, gerindo concursos 6 anos num TEIP. Seja como for sempre é mais que o currículo específico de outros opinadores mais ilustres sobre esta matéria.....

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