Didáctica do escarro
Descansem os mais enojados com o título que não se vai aqui perorar, com comparações gráficas, sobre a natureza de várias medidas do governo no sector educativo.
Vai-se tentar falar de educação em sentido lato e, sendo, em concreto, o tema arriscado, há precursores ilustres no seu tratamento. Erasmo de Roterdão escreveu um dos seus livros mais traduzidos e reeditados (130 edições, segundo algumas fontes, no espaço de poucos anos após a 1ª edição de cerca de 1530) sobre o que se chamava então civilidade e dedicou farta energia e tempo, entre outros, aos problemas da ranheta, do escarro, do nariz pingado e outras excreções mais ou menos aéreas.
A referência erudita tornou-se básica na história da cultura e sociedade ocidental, entre outras razões, por causa do carácter revolucionário da abordagem que fez a esses, e outros textos, Norbert Elias na sua obra essencial intitulada Processo Civilizacional (ou civilizador nas traduções brasileiras). (1)
Dizia Erasmo que a forma “correcta” de gerir a escarreta expelida seria qualquer coisa como virar-se de lado para cuspir (no chão, entenda-se) para que a saliva não molhasse ninguém. Se caísse algo mais consistente no chão devia ser pisado para evitar enojar os outros.
Esta preocupação com os outros e a sua sensibilidade ao nojo foi reforçada no século XIX com as campanhas de saúde pública (vejam-se exemplos da Liga de profilaxia social, no Porto) que visavam erradicar o hábito de cuspir no chão, até pela pressão brutal da tuberculose. A limitação do hábito de escarrar foi um passo civilizacional, em termos básicos, embora a ideia seja um pouco mais complexa.
Nos meus 41 anos ainda me lembro de ver, em miúdo, e da minha avó me explicar o que era, numa repartição de finanças, um escarrador (mobiliário hoje extinto) que era concebido de forma a que não se vissem os produtos da actividade expulsiva e se evitasse a tentação de os projectar pelo chão.
Não cuspir para o chão, afinal, é hábito de freguês educado. (Não pedir fiado também era, mas tornou-se hábito nacional).
Veio-me tudo isto à ideia quando decidi, um destes dias, passar à prática na defesa da ecologia e viajar de comboio entre Vila Praia de Âncora e Viana do Castelo em vez de levar carro.
No regresso, no apeadeiro de Âncora Praia, tive de me abrigar de um chuvisco num dos 2 abrigos. Logo aí, reparei num facto curioso: num deles estavam uns 14 ou 15 cotas como eu, as pessoas mais velhas, apertados e a molhar-se. No outro, mais afastado, à larga, estavam 7 ou 8 jovens adolescentes. Do grupo dos cotas ninguém passava para o abrigo dos jovens. Vá-se lá saber porquê, o apeadeiro era uma metáfora do actual corte geracional português.
Com a chuva a agravar-se, procurei assento do lado dos jovens. Muito barulho, algazarra. Sentado a ler o jornal suportava, apesar de tudo sem custo, as provocações sonoras dos rapazes às raparigas e o troco (ou falta dele) destas. Lia as notícias e, pelo menos, não me molhava.
Ao fim de uns minutos percebi um ruído constante e repetido de 30 em 30 segundos: rrrrrrr pssst ......RRRRRR PSSSST.
O barulho era tão sonoro que desisti da leitura e fiquei a observar. 4 ou 5 dos miúdos alternavam na actividade contínua de lançar escarretas para o chão e para a linha.
Tinha parado a leitura e meti conversa. Alguns deles conheciam-me como vizinhos e de Darque. Pergunta de cota: “eh pá, vocês não acham que isso é uma grande porcaria!?”.
Resposta de galito de briga: “eh pá, e você é da polícia, vou pagar multa?”
Resposta de galo velho: “Porquê? Pareço? Achas que devia pagar-se?”
Conversa puxa conversa, reconhecendo-me, fomos ter à higiene e à história do hábito de escarrar e das multas passadas, que interessou pouco (a História anda na mó de baixo). Abordagem certeira parecia-me ser: “numa entrevista para emprego, vais escarrar?”
Puxando ao racional lá houve um que me disse que o colega estava a “escupir”, digo cuspir, muito porque estava com uma coisa na garganta. Na verdade, nos 10 minutos que durou a conversa não fez isso uma única vez.
Não foram agressivos apesar de defenderem o interesse etnográfico e terapêutico da cuspidela e até mostraram, depois do embate original, interesse cordial e simpatia na conversa. Enquanto conversamos o facto mais saliente é que ninguém escarrou. Curei-os, com certeza. Pelo menos por uns minutos.
E porque conto isto? Talvez por não ter arranjado nada de mais interessante para escrever. Ou porque prometi aos meus interlocutores que escrevia um texto sobre a nossa conversa. Ou, talvez porque, no meio do escarro purulento, que são algumas reformas curriculares em curso, valha a pena lembrar com a historieta que é preciso tempo para dar espaço a essa “civilidade para crianças”, que Erasmo já previa, e que, na minha família, noutro tempo social, a minha avó supriu sem precisar da escola. E que chamando-se Formação Cívica, ou outra coisa qualquer, é preciso garantir que aos 14/15 anos já se reflectiu um pouco sobre porque se não cospe para o chão, seja a escarradela sonora, seca, colorida, inevitável, saudável ou doentia.
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